domingo, 28 de outubro de 2018

Um dia, Jesus, aproximando-se da cidade de Jericó, realizou o milagre de restituir a visão a um cego que mendigava ao longo do caminho (cfr Lc 18, 35-43). Hoje queremos colher o significado deste sinal porque toca também a nós diretamente. O evangelista Lucas diz que aquele cego estava sentado à margem do caminho a mendigar (cfr v. 35). Um cego naquela época – mas também há pouco tempo – não podia viver de nada que não de esmola. A figura deste cego representa tantas pessoas que, também hoje, se encontram marginalizadas por causa de uma deficiência física ou de outro gênero. Está separado da multidão, está ali sentado enquanto as pessoas passam ocupadas, entretidas nos próprios pensamentos e em tantas coisas…E o caminho, que pode ser um lugar de encontro, para ele, em vez disso, é o lugar da solidão. Tanta gente que passa…E ele é sozinho.
É triste a imagem de um marginalizado, sobretudo no pano de fundo da cidade de Jericó, o esplêndido e exuberante oásis no deserto. Sabemos que justamente em Jericó chega o povo de Israel ao término do longo êxodo do Egito: aquela cidade representa a porta de ingresso na terra prometida. Recordemos as palavras que Moisés pronuncia naquela circunstância: “Se houver no meio de ti um pobre entre os teus irmãos, em uma de tuas cidades, na terra que te dá o Senhor, teu Deus, não endurecerás o teu coração e não fecharás a mão diante de teu irmão pobre; mas lhes abrirá a mão e lhes emprestará segundo as necessidades de sua indigência”.(Dt 15,7.11). É forte o contraste entre esta recomendação da Lei de Deus e a situação descrita pelo Evangelho: enquanto o cego grita invocando Jesus, o povo o repreende para fazê-lo calar, como se não tivesse o direito de falar. Não tem compaixão dele, ao contrário, fica cansado com os seus gritos. Quantas vezes nós, quando vemos tanta gente no caminho – gente necessitada, doente, que não tem o que comer – sentimos cansaço. É uma tentação que todos nós temos. Todos, também eu! É por isso que a Palavra de Deus nos adverte que a indiferença e a hostilidade tornam cegos e surdos, impedem de ver os irmãos e não permitem reconhecer neles o Senhor. Indiferença e hostilidade. E às vezes essa indiferença e hostilidade se tornam também agressão e insulto: “mas levem embora todos esses”, “coloquem-nos em outro canto!”. Essa agressão é aquilo que fazia o povo quando o cego gritava: “mas você, vá embora, vai, não fale, não grite”.
Notemos um particular interessante. O Evangelista diz que alguém da multidão explicou ao cego o motivo de toda aquela gente dizendo: “Passa Jesus, o Nazareno!” (v. 37). A passagem de Jesus é indicada com o mesmo verbo com que no livro do Êxodo se fala da passagem do anjo exterminador que salva os Israelitas na terra do Egito (cfr Ex 12, 23). É a “passagem” da páscoa, o início da libertação: quando Jesus passa, sempre há libertação, sempre há salvação! Ao cego, portanto, é como se fosse anunciada a sua páscoa. Sem deixar-se intimidar, o cego grita mais vezes por Jesus reconhecendo-o como o Filho de Davi, o Messias esperado que, segundo o profeta Isaías, teria aberto os olhos aos cegos (cfr Is 35, 5). Diferente da multidão, este cego vê com os olhos da fé. Graças a essa a sua súplica tem uma poderosa eficácia. De fato, ao ouvi-lo, “Jesus parou e ordenou que o levassem a ele” (v. 40). Assim fazendo, Jesus tira o cego da margem do caminho e o coloca no centro da atenção dos seus discípulos e da multidão. Pensemos também nós, quando estivemos em situações ruins, também situações de pecado, como foi o próprio Jesus a nos tomar pela mão e nos tirar da margem do caminho e nos dar a salvação. Realiza-se, assim, uma dupla passagem. Primeiro: o povo tinha anunciado a boa nova ao cego, mas não queria ter nada a ver com ele; agora, Jesus obriga todos a tomar consciência de que o bom anúncio implica colocar no centro do próprio caminho aquele que estava excluído. Segundo: por sua vez, o cego não via, mas a sua fé lhe abre o caminho da salvação, e ele se reencontra em meio a quantos tomaram as ruas para ver Jesus. Irmãos e irmãs, a passagem do Senhor é um encontro de misericórdia que une todos em volta Dele para permitir reconhecer quem tem necessidade de ajuda e de consolo. Também na nossa vida Jesus passa; e quando Jesus passa, e eu me dou conta, é um convite a me aproximar Dele, a ser melhor, a ser um cristão melhor, a seguir Jesus.
Jesus se dirige ao cego e lhe pergunta: “O que queres que eu faça por ti?” (v. 41). Essas palavras de Jesus são impressionantes: o Filho de Deus agora está diante do cego como humilde servo. Ele, Jesus, diz: “Mas o que queres que eu te faça? Como tu queres que eu te sirva?”. Deus se faz servo do homem pecador. E o cego responde a Jesus não mais chamando-o “Filho de Davi”, mas “Senhor”, o título que a Igreja, desde o início, aplica a Jesus Ressuscitado. O cego pede para poder ver de novo e o seu desejo é concedido: “Tenha de novo a sua visão! A tua fé te salvou” (v. 42). Ele mostrou a sua fé invocando Jesus e querendo absolutamente encontrá-lo, e isso o levou o dom da salvação. Graças à fé agora pode ver e, sobretudo, se sente amado por Jesus. Por isso a passagem termina referindo que o cego “começou a segui-Lo glorificando a Deus” (v. 43): se faz discípulo. De mendigo a discípulo, também essa é o nosso caminho: todos nós somos mendigos, todos. Sempre precisamos de salvação. E todos nós, todos os dias, devemos dar esse passo: de mendigos a discípulos. E assim, o cego caminha atrás do Senhor e se torna parte da sua comunidade. Aquele que queria calar, agora testemunha em alta voz o seu encontro com Jesus de Nazaré e “todo o povo, vendo, louva a Deus” (v. 43). Acontece um segundo milagre: isso que aconteceu ao cego faz com que também o povo finalmente veja. A mesma luz ilumina todos unindo-os na oração de louvor. Assim Jesus infunde a sua misericórdia sobre todos aqueles que encontra: chama-os, faz com que venham a si, reúne-os, cura-os e os ilumina, criando um novo povo que celebra as maravilhas do seu amor misericordioso. Deixemos também nós chamar por Jesus e deixemo-nos curar por Jesus, perdoar por Jesus e vamos atrás de Jesus louvando a Deus. Assim seja!
Papa Francisco


terça-feira, 2 de outubro de 2018

Santa Benedita Cambiagio Frasinello
  1. 1. Assim narrou Santa Benedita Irmã Pilar Sanz Editoras Beneditinas Brasília – DF . 2009
  2. 2. MINHA VIDA Assim narrou M. Benedita... Eu vivi uma infância feliz, no meio daroça, rodeada do carinho dos meus pais e irmãos,que gostavam muito de mim. Ainda me lembrodos campos verdes por onde brincava,dosmananciais cristalinos onde matava a minhasede... Junto aos colegas da minha idade divertia-me fazendo brincadeiras. Eu tinha 11 anos quando a preocupaçãocomeçou a percorrer o coração e as conversas dosmais velhos... eu intuía que estava acontecendoalguma coisa muito grave. Um dia, muito cedo, minha mãe comentou:filha temos que ir embora, as tropas de Napoleãojá estão muito perto e arrasam tudo por ondepassam, não podemos ficar aqui por maistempo... Eu vivia a dor de deixar alquilo que maisamava...Olhei os montes pela ultima vez.Naquele dia, mal avistava o alvorecer nohorizonte, uma brisa suave e fresca o inundavatodo. Pouco a pouco, no entanto, íamos deixandoa cidade, tudo desaparecia diante de mim. Aomeu lado, meus pais e irmãos caminhavamcansados, todos nós desejávamos ver um novo
  3. horizonte se abrir e que o sol brilhassenovamente. Aos 15 anos de idade, me brotou umaalegria profunda, um gozo em minha alma, algoque eu não sabia definir, decifrar, uma atração.Deus era o meu confidente, meu amigo, aqueleque eu partilhava todo sorriso, toda lágrima,minha felicidade, eu era feliz... Sentia-O perto demim, como o toque do vento em meu rosto, operfume das flores que envolvia todo ar... Ele mechamava de forma tão clara, que não haviadúvida, era ELE. Era como uma segurança semlimites no meio do oceano. Nesses momentos, compreendia que Eleera o próprio Oceano, onde minha vida tinhasentido. Tal loucura de amor tinha que sercorrespondida... Por isso, um dia, enquanto todosdormiam, no silencio da noite, me levantei comcautela, peguei a mala que eu mesma haviapreparado e fui procurar um lugar fora da cidade,onde eu pudesse realizar meu sonho. Caminhei durante algumas horas, jácomeçavam a se desenhar os raios do sol, quandocheguei à caverna... Olhei com atenção, procureium canto e coloquei minhas coisas... Tirei umaimagem da virgem Maria e outra de Cristo,
  4.  “O nosso ser é um conjunto de perguntas que só em Deus tem as respostas certas e uma feliz realização.” (HP)
  5.  improvisei um pequeno altar. Ali comecei minhaexperiência de solidão e silencio... Algo maiorque qualquer amor humano me havia levado atéaquele lugar, não era capricho meu. O primeiro dia passou... Quando a fomecomeçava a apertar o estomago, comi raízes parame alimentar, bem como ervas, ali era um lugarde muita vegetação. Depois de comer o que anatureza me oferecia dava graças a Deus portanta generosidade... Sentia-me feliz. Quandocaiaa noite, a escuridão envolvia tudo... Dei-meconta, enfim, que estava longe de minha casa, deminha mãe e de todo carinho que me doavam.Pensava na preocupação que poderiam estarsentindo com minha ausência, mas dormia empaz, pois o que eu sentia, naquele momento, eramaior que a preocupação dos meus familiares. Assim passaram-se cinco dias, não haviatempo para o aborrecimento, cada manhã era umaoportunidade para amar, para dedicar-me Aquelepelo o qual eu amava e me sentia amada por Ele,sentia-me seduzida. O pior aconteceu no sexto dia, enquantopasseava entre as plantas, pensando na beleza dacriação, assustei-me com uns fortes gritos,
  6.  pronunciavam meu nome, então dei-mecontaque eram vozes conhecidas, eram meus pais. Despertei como de um sonho. Enquantotentava explicar o porquê de minha fuga, ouviameu Pai dizer: “Deixe de bobagem, você secasará como todas as jovens. Que ridículo setorna para toda a família! Para toda a cidade, quesó fala em você! Tens consciência do que queresfazer?”. Não pude defender-me. Voltei para casa,era muito nova, me submeti as ordens de meuspais, não tinha opção. Enquanto seguia minha vida, no trabalhodas vendas de verduras e frutas, ouvia comatenção o que as pessoas me diziam e, a cadaescuta, percebia que meu coração se inflamava aoouvir histórias de meninas livres, queperambulavam pelas ruas e amavam livremente,sem que ninguém se preocupasse com elas. Para meus pais eu era apenas uma meninaque cuidavas dos afazeres de casa, no entanto, emmeu coração, ardia um desejo que eu mesma nãopodia compreender, deixando-me guiar por umamão misteriosa que levava-me ao rumo de minhanova história. Passados cinco anos, parecia que amonotonia começava a rondar meu espírito,
  7.  “Na medida em que a Igreja ondeiea bandeira da “vida intima com Deus” como missão evangélica, enxergaremos uma nova primavera na maneira de ser Cristão.” (HP)
  8.  quando apareceu em minha vida um jovem. Eleera alegre, piadista... encantei-me com seu jeitode ser, e a recíproca foi verdadeira. Meu paipercebeu, mas aquele tempo às coisas nãoandavam tão rápidas como os dias de hoje, ele sechamava João. Floresciam os pés de amêndoas e eu mesentia como eles, florescendo por dentro, algonovo invadiam-me por dentro como se eudescobrisse uma nova forma de amar. Meus pais ficaram muito contentes emsaber que meu coração ardia por um jovem, poisdesde minha adolescência, sofriam achando-meum pouco diferente das outras meninas. Decidimos nos casar na Basílica de Pavia,em 7 de fevereiro de 1916. Estava tudo enfeitadocom flores. João e eu embarcamos em um projetonovo, que víamos como o “Projeto de Deus”. Tínhamos tudo para sermos felizes:trabalho, de onde tirávamos o dinheiro para onosso sustento, uma pequena casa, amor mutuo,compromisso e entrega e...o mistério que nosenvolvia, fazendo-nos engrandecer cada dia maisa nossa entrega. Mas em meu coração, ressoava novamenteas conversas das senhoras ricas que passavampela minha tenda, e “essas meninas deixadas ao
  9. seu livre prazer”, os dias passados na gruta, tudome fazia pensar em uma entrega de vida maisprofunda. Mas como isso poderia acontecer sehavia João em minha vida? O que ele pensaria? Estávamos casados há dois anos e, certanoite, como de costume, quando fechamos atenda, nos sentamos cansados em frente à lareira,foi ai que ele se deu conta que algo mepreocupava... “Deus não nos concedeu filhos”...ele me acariciava perguntando se era esse opensamento que me perturbava! Fiqueicompletamente comovida com sua atitude.Naquela noite conversamos muito, noscompreendemos. João não podia ver-me triste,estava sempre disposto a me animar. Confessouque já havia percebido minha tristeza e sabiaexatamente o que me incomodava, meangustiava. Juntos, João e eu resolvemos engrandecero amor que nos inflamava por dentro. Com ocoração livre, decidimos viver uma vida „casta‟,sacrificada, mas que nos conduzia a uma vidamais fecunda. Naquela noite dei graças a Deuspor saber conversar sobre meus anseios e porJoão compreender a minha vida. Vibrei tanto emmeu interior, que me sentia embriagada por um
  10.  Esta é a minha vocação: dar resposta ao amor de Deus que me ama desde a eternidade!.10
  11.  “amor divino”. O sonho que meus pais haviammatadoressurgia novamente em meu ser. Minha irmã Maria ficou doente por oitoanos, a ela ofereci toda minha atenção e ajuda.Não poupei forças nem tempo a ela, pois sabia esentia que Deus me pedia essa entrega. Uma luzme conduzia por caminhos que eu nãoimaginava. Em 1825, Maria veio a falecer. Joãocontinuava ao meu lado. Certa manhã,compreendi que o que eu fazia, era pouco dianteda grandiosidade da vida e seus apelos. Foiquandodecidi entregar-me a Deus... Iria aumconvento, algo que cultivava em meu ser a muitotempo. João fez o mesmo, foi até o convento dosSomascos e pediu que o aceitassem como leigo. Ali, no silêncio, me senti livre. Meucoração vibrava ao ouvir o som do Evangelho.Passou a primavera e chegou o verão, com ooutono enxergava os ramos secos através daminha janela. Meus sonhos, minhas lembrançastomavam uma nova cor e, mais uma vez,ressurgia à mente as meninas de Pavia! As viaperambulando, de um lado para o outro, sem queninguém as enxergassem ou lhes transmitissemum gesto, um olhar de carinho.
  12.  A noite surgia, mais uma vez em minhavida, como uma sinfonia de silêncio, quebrado,somente, pelo ritmo suave do som das águas quedesciam das cascatas de uma cachoeira, levandoconsigo tudo aquilo que conseguia atingir... Aliestava Ele, o jovem que me mostrava as meninasperdidas, sem rumo...! Sim, eu serei a mãe destas jovens, euprometo! Neste momento acordei! Estava emminha cama, suava e ardia-me em febre, o meucoração batia muito forte. Foi assim que, não me lembro bem como,me curei. Novamente peguei minha trouxa e,como em outros tempos, percorri cada passo dolongo caminho, cantando de alegria. Um novohorizonte se abria para mim. Aquelas meninashaviam roubado meu coração e tornei-meperegrina dos caminhos apaixonados da vida. Tinha vontade de abraçar as montanhas,cruzar rios, subir nas arvores, até chegarnovamente em Pavia. João nunca me deixou sozinha, era umbom homem, carinhoso. Acompanhou-me àPavia nessa nova aventura, quis viver ao meulado sem que os outros o vissem, na humildade.
  13.  “Precisamos silenciar o nosso interior para escutar a voz de Deus no meio das preocupações de cada dia. Jesus está vivo! Caminha sempre ao nosso lado.” (HP)
  14.  Ali estávamos eu e João. Convidamos asprimeiras jovens que queriam começar uma vidanova. Partilhamos tudo com elas, aprenderam aler, escrever... Dialogávamos sobre o sentido davida, como deveria ser vivida e valorizada, dandoum novo sentido à ela. Conversávamos sobre asdificuldades, os amigos... A maioria delas estavasozinha. Necessitavam dar e receber carinho deuma mãe que as ensinassem a enxergar a vida deoutra forma. Que cuidasse delas e lhes dessecoragem, que as ajudasse a compreender quandoalgo desse errado. Elas preenchiam a minha vida,e meu coração se emocionava. Nelas, via o rostode Deus sem fazer nenhum esforço, era umaexperiência gratificante. Uma noite, na capela, Deus fez-me sentiruma forte sensação, meus olhos brilhavam comumasurpreendente emoção. Fez-me provar ossabores de uma repetida e incomparávelexperiência. Eu me abria ao presente de Deus eme deixava acariciar por sua amizade, a maiseloqüente de todas em meio ao perfume daprimavera. Para mim, restava o caminho maisdesafiador, mais doloroso e, muitas vezes, Deus
  15. nos faz experimentar o amor, antes de enfrentar ocalvário, para que não desfaleçamos. Contava com o apoio de João e algumascompanheiras que desejavam partilhar essetrabalho. Doar minha vida e minhas energias poraquelas jovens, e descobrir a cada amanhecer,essa fonte que borbulha no coração, que só vivepara Deus. Em minha alma ardia uma chama que meconsumia, foi quando foram lançados osprimeiros golpes, começara o martírio: “... erauma farsa! Mata suas filhas! As prende no porãode sua casa! Neste momento, meu coração seestremeceu. Como poderiam pensar algo assim?As falsas afirmações, inclusive, chegaram aoBispo. A cruz chega quando menos esperamos.Deus reservou esta provação num momento dematuridade de espírito, antes seria impossívelsuportar. Estava disposta a receber todas aspedras, mas não consentiria que fizessem algummal às minhas filhas. Aconteceu que, em Outubro de 1837,diante da imagem de Cristo Crucificado, percebique minhas mãos encontravam-se vazias. As mesmas mãos que haviam dado banhonaquelas jovens, que acariciavam seus rostos e
  16. enxugava as lágrimas que teimavam em cair porcausa do sofrimento e da dor, mãos que asensinaram a escrever... Chorei muito a princípio,as noites escuras tomavam conta de mim e oabandono invadiu meu ser. Mas, neste momento,compreendi que se o grão de trigo não cair emorrer, não voltara a dar frutos, compreendi queo amor eterno está exposto na cruz e que oscaminhos de Deus são surpreendentes. É precisodeixar o remo nas mãos de Deus, para possamoscruzar o “grande oceano”: Por Deus, estavacomeçando a compreender a vida. A dança davida seguia no ritmo de Deus. Eu tinha quepercorrer o caminho de Deus, não o meu. Confesso que foi um desprendimentoterrível, como um forte vendaval. A presença deJoão e das três companheiras que seguiamcomigo, me ajudaram a suportar aquele momentode entrega total e sem limites que Deus me pedia.Pois, somente os verdadeiros amigospermanecem conosco nas horas de sofrimento eprovações e não apenas nas horas de felicidade. Mais uma vez, seguia o caminho indicadopor Deus. Não importava a direção; senti-melivre como um pássaro para cruzar o horizonte,experimentando a generosidade do Pai. Aquelesque seguem com ele, o caminho da salvação,
  17.  “Eu sei que posso ser fiel a Deus apoiado na sua própria fidelidade,porque Ele se entregou por mim.” (HP)
  18. partilham o sofrimento, tirando-lhes o peso efazendo-lhes caminhar mais rápido. Acompanhada de João e minhascompanheiras, chegamos a Ronco, povoado deJoão. Ele também merecia voltar a pisar o chãode sua terra e sentir-se acolhido por ela, pois, alivivera com muitos sacrifícios. Por este motivo,permaneceríamos ali por alguns dias... Esses caminhos tortuosos nos deixariamcom calos nos pés, mas nos conduziriam aoEspírito Divino. Logo após nossa chegada, aspessoas nos convidariam a cuidar das meninas dopovoado, o que era, desde o início, nossaintenção. João iniciou o trabalho, secomprometendoa ficar mais tempo no local. A vida era tranquila e podíamos descansarbastante. As jovens que me acompanharamqueriam me ver comprometida com o ideal daconsagração. Por isso, após muita oração,partilhamos os mesmo sonhos, decidimos nosconsagrar a Deus e nos dedicar às jovens ecrianças que necessitavam de ajuda em todos ossentidos. Vi na decisão de nossa pequenacomunidade, ser manifestada a vontade de Deus.O som do sino anunciava-nos o melhor momentodo dia: levantar, rezar, comer... O ambiente
  19. silencioso de Ronco se convertia em uma grandesinfonia, embora tivesse o grito das crianças, dasclasses, das irmãs e da oração, ali o silencio defato reinava. À noite, enquanto todos dormiam,eu discretamente me levantava e ia até a capela.Depositava toda a minha confiança em Deus eEle me presenteava, deixando-me levantar vôo.Quando menos esperava, já era dia. Compreendíamos que a vida era cheia deencantos e beleza. Para tanto, devíamos dargraças a Deus por tudo, assim, nos reuníamos emuma só oração, uma só fé. Sentíamos felizes,pois, nossos sonhos e esperanças chegavam emnossas mãos. Muitas vezes, tinha que me ausentar eatender outros lugares que me requisitavam,também me chamavam em Pavia. Ali, em outracasinha, hospedamos várias meninas, que abriamsorriso nos lábios. Sofri muito, quando tive que deixar tudopara traz. Obrigada a desfazer-me daquelesmomentos tão fundamentais em minha vida, senticomo se me arrancassem a pele... Mas agora,Deus havia me presenteado momentos de prazer,de amor. Minhas forças declinavam, assim ia-meabandonando nas mãos de Deus como um
  20.  instrumento fiel. Desci a casa do oleiro e deixei-me ser modelada por ele. Escrevi normas para minhas filhas. Via atrajetória de suas vidas como uma luz, quedesaparecia na imensidão do caminho ecomeçava uma aventura nova, um novohorizonte. Aproximava-se o dia 21 de março... Haviaproposto que este dia fosse destinado ao encontrocom o Amor. Reuni as meninas e as jovenscompanheiras em um lugar, em silêncio. Joãotambém se fez presente. Naquele dia, ele sedespediu de mim, me provocando um nó nagarganta, um pequeno momento de intimidade!Quantas renúncias por um amor sublime... Eminhas filhas, essas filhas as que tanto queria.Choravam, rezavam... o meu olhar ficou fixonum raio de luz, meus ouvidos já não percebiamseus gemidos. A fé me surpreendeu nos braçosdo Pai e vi saciados todos os meus desejos noAmor! Tudo era claridade. Era a eternidade. Aqui não tem passado nem futuro. Tudo épresente. Vivo numa quietude dinâmica. Tenhominha morada na Paz infinita.
 “Amemos com todas as nossas forças, além de nossas forças,até nos perder no mesmo ato de amar! Assim se abrirão no nosso peito as asas da ressurreição!” (HP) HNA PILAR S