“Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se,
apressadamente, a uma cidade da Judéia”
A vida de
Maria na terra foi um percurso, um itinerário para a plenitude humana, em
comunhão com todos os outros, através de seu filho Jesus. Pois bem, cumprido
esse percurso vital, que havia começado no seu nascimento, Maria foi assumida
(assunta) à glória de Deus, que se identifica com a Ressurreição e Ascenção de
Cristo. Maria “foi aspirada para dentro de Deus”, absorvida pela Vida.
Este
dogma afirma que Maria culminou sua vida em Deus, por meio de Jesus, “em corpo
e alma”, ou seja, como pessoa histórica, em comunhão com as demais pessoas que
estiveram e continuam estando implicadas em sua vida. A plenificação da vida de
Maria na Assunção não é triunfo da passividade, mas do amor solidário e da
preocupação pelos outros. A Assunção é o céu da ternura maternal, a proximidade
amistosa, o serviço gratuito... Por um lado, Maria chegou ao cume:
contempla Deus face a face, vive no interior da família divina. Por outro
lado, Maria está assumindo uma nova função: ela começa sua tarefa de ajuda
maternal em favor de todos os homens e mulheres, especialmente dos mais pobres
e frágeis.
Na
festa da Assunção a Igreja nos revela a plenificação final da obra de Deus na
mulher que não opôs nenhuma resistência à sua ação. Deus havia empreendido um
caminho de salvação e ela, com seu sim, consentiu a esse projeto salvífico. Sua
original maneira de colaborar consistiu em deixar Deus fazer, e por isso
reco-nhece: “O Poderoso fez em mim maravilhas”.
El Greco A Assunção não é um privilégio excepcional
exclusivo de Maria, mas o símbolo de nosso próprio destino, quando seremos
“assumidos” na vida definitiva. Este dogma pode ser entendido desde um duplo
enfoque: com ela acontece algo único, e com ela acontece aquilo para o
qual todos estamos destinados.
Ela é a Humanidade que já chegou à plenitude e é a
vida que vence a morte. Sua Assunção é como uma ampliação da grande Ascenção de Jesus. Maria,
como Imaculada e Assunta, é um ícone de esperança. Com isso, nossa vida se torna
caminho de esperança jubilosa; com Maria já entramos, de algum modo, no céu de
Deus, no futuro da ressurreição plena.
O próprio
Papa Pio XII deixou isso claro ao proclamar este ensinamento solene em 1950: “O
essencial da mensagem é reavivar a esperança na própria ressurreição”, que
consiste em ser assumido no mistério original da Vida da vida. A Assunção não é
só um mistério de elevação da Mãe de Deus. É também um mistério de “descida”,
pois ela continua sendo humanidade, mas é humanidade carregada de Deus,
integrada no mistério trinitário.
Assunção
é vida plena antecipada.
Ao falar
da Assunção nos referimos à plenitude final e à culminação do processo vital de
Maria. Mas a meta supõe sempre um caminho, um percurso. O Evangelho de hoje nos
apresenta Maria, desde o começo, “caminhando depressa”, de Nazaré da Galileia
até às montanhas da Judéia para chegar à casa de Isabel e ajudá-la; naquela
primeira “meta” de seu percurso recebeu dos lábios da prima a primeira
bem-aventurança: “Feliz é tu que acreditaste...” E aquela saudação foi uma
antecipação da felicitação que Maria recebeu no final definitivo de sua
trajetória.
Toda
a vida de Maria consistiu em dirigir-se apaixonadamente para essa meta
definitiva que não podia ser outra coisa que a prontidão para o serviço a quem
dela precisasse. É oportuno recordar o que dizia o Vat. II: Maria é o modelo e
exemplar mais acabado de toda vida cristã. Foi aquela que mais
conheceu, amou e seguiu Jesus Cristo.
Quando
falamos de Assunção, empregamos um termo que desperta imagens de movimento, de
atração para o alto, de impulso ascensional; nosso olhar é atraído para a
altura, e vemos Maria elevada para essa dimensão que chamamos “céu”. Essa
maneira de vê-la, no entanto, não a afasta de nossa experiência, senão que nela
se faz transparente o destino da humanidade inteira: em Maria vemos agora o
cumprimento antecipado da transfiguração de nossa existência.
Ela foi
“assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu
com a história dos pequenos, dos pobres e excluídos... Maria foi glorificada
porque se fez radicalmente “humana”. Por isso, Deus a engrandeceu plenamente.
Crer
na Assunção de Maria implica crer na exaltação dos pequeninos e humilhados, dos
pobres esquecidos, dos injustiçados sem voz, dos sofredores sem vez, dos
abandonados sem proteção, dos misericordiosos descartados, dos mansos
violentados...
Vivemos
já a Assunção quando não nos deixamos determinar por uma vida estreita e
atrofiada, presa pelos apegos... Somos “assuntos” quando sonhamos, buscamos e
ativamos todos os dinamismos humanos de crescimento e de expansão em direção
aos outros. Nós nos “elevamos” quando “descemos” em direção à humanidade ferida
e excluída. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da realidade
pessoal e social, sendo presença servidora.
Somos chamados a nos situar, como Maria, diante do olhar salvífico de
Deus: “... porque Ele olhou para a humildade de sua serva”; deixar-nos “olhar”
por Deus para sentir-nos acolhidos e envolvidos em sua ternura, seu perdão e
seu amor incondicional; deixar que seu olhar faça cair os fardos que carregamos
às costas e nos possibilite experimentar a assombrosa liberdade de não ter que
representar papéis, nem acumular méritos, nem dissimular fragilidades; sentir-nos
envolvidos na proteção cálida de um amor que nos acolhe e desata em nós ricas
possibilidades de existência e crescimento; emigrar dos velhos “chãos” que
sustentavam nosso eu, para encontrar-nos ancorados em outro centro e respirando
outro ar; fazer a experiência da relação filial que nos pacifica e expande o
coração. A partir daí, tomar de novo contato com a realidade e nos dirigirmos a
ela com um olhar novo e um coração acolhedor: a de quem se sabe “filho” e
“irmão”. E quem se reconhece filho sob o olhar do Pai, todos se tornam irmãos.
Celebrar
o mistério da Assunção de Maria, portanto, é também um convite a viver nessa
dinâmica do compromisso e não da resignação, da esperança solidária e não da
“espera passiva”.
Este
mistério celebrado por toda a Igreja é um mistério profundamente enraizado no
coração do ser humano, que quer viver sempre, permanecer, ser imortal. Por isso
somos convidados a continuar nesse “deslocamento” contínuo a serviço da vida.
ASSUNÇÃO
É MISSÃO.
“Como
posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?”
Na festa da Assunção,
a liturgia nos propõe aprofundar o sentido do encontro a partir da contemplação
deste horizonte inspirador: a Visitação. Os ícones que ao longo dos séculos
expressam esta visita, esta saudação, nos apresentam duas mulheres vinculadas,
unidas por um abraço, por um beijo, por uma mesma alegria. Em seu modo de
entrar em comunhão, em sua maneira de dialogar e de se alegrar, elas se revelam
mestras para nós, para nossa humanidade fragmentada que aspira viver a “cultura
do encontro”.
A cena apresentada
por Lucas nos deixa na agradável e desafiante companhia de Maria e Isabel: duas
mulheres, dois ventres cheios de vida; duas mulheres cheias de Deus; duas
mulheres em um mesmo encontro. Ambas estão grávidas e de um modo surpreendente.
As duas esperam filhos muito especiais; sentem que carregam em seus ventres uma
novidade que as supera. As duas tem “um corpo abençoado” e um ventre fecundo,
sinal e realidade da ação de um Deus que é Vida.
Duas mulheres com duas
missões diferentes: uma, portadora do Messias, e outra, portadora daquele que
preparará os caminhos. Duas mulheres diferentes, mas cada uma com sua
experiência de Deus. Uma, a experiência de Deus em um seio virginal; a outra, a
experiência de Deus em um seio seco e estéril. No encontro entre as duas, cada
uma descobre e reconhece o mistério da presença de Deus na outra.
O ícone da Visitação
contagia e desperta o prazer e a alegria: a do encontrar-se, a do crer e a do
servir. Alegria fecunda, já que está ligada a dois nascimentos que vão mudar a
história de seu povo e da humanidade. Nesta cena, Deus mesmo se infiltra no
cotidiano e naquilo que socialmente não tem maior relevância, ou seja, a vida
diária de duas mulheres: Maria e Isabel. Quebra-se assim a centralidade do
Templo. Elas festejam as maravilhas do Senhor em um lugar simples, numa região
montanhosa, num caminho e numa casa de família simples. O maravilhoso e
extraordinário tem lugar no ordinário e humilde. Ali se celebra a vida chegada
e por chegar. As protagonistas da cerimônia são duas simples mulheres.
Neste maravilhoso
acontecimento tudo é encontro, junta-se o Antigo e o Novo Testamento, a
juventude e a idade madura. As duas mulheres estão profunda e intimamente
vinculadas entre si. Com elas e delas nasce o tempo novo, o do Reino, o de
Jesus. Tem-se a impressão de viver um momento culminante da história. Elas nos
conduzem a agradecer a capacidade feminina de deixar transparecer o Mistério
que nos habita, de despertar-nos uns aos outros para essa Vida cuja presença
reconhecemos em nosso interior.
Maria, aquela que
sente o êxodo de Deus, saindo de si mesmo, para encarnar-se no seu seio
virginal, e que a move a pôr-se em caminho, saindo de si mesma, porque o
serviço aos outros a apressa.
Maria é a Mulher que
inaugura e estabelece os critérios para encontrar-se com o Senhor e com os(as)
demais. Sua capacidade de encontro parte de uma experiência de profunda
interioridade; interioridade visitada por Deus e, portanto, fecundada por seu
olhar cheio de amor e ternura, cheio de compaixão pela humanidade e pela
criação. Só a partir de uma interioridade fecunda se dá a possibilidade dos
encontros mais verdadeiros.
Na Laudato si (n.
240) o Papa Francisco nos diz que “a pessoa humana mais cresce, mais amadurece
e mais se santifica à medida que entra em relação, quando sai de si mesma para
viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim,
assume em sua própria existência esse dinamismo trinitário que Deus imprimiu
nela desde a criação. Tudo está conectado, e isso nos convida a amadurecer uma
espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade”.
O dogma da Assunção,
festa do encontro pleno, nos revela que precisamos nos converter à cultura do
encontro em todos os sentidos. Maria foi “assumida” para o encontro definitivo
com Deus porque foi presença que inspirava e proporcionava encontros
humanizadores. Ela “subiu” porque “desceu” ao encontro dos preferidos do
Pai.
Maria, na cena da
Visitação, passa da interioridade ao acontecer, à história, ao encontro. É
assim como se dá uma autêntica experiência de Deus. Ela nos mostra que tal
experiência tem dois pés: um posto na experiência do amor de Deus que nos
visita, e outro posto sempre no caminho que precisamos percorrer para ir ao
encontro dos demais. Os dois pés são indispensáveis para que a experiência de
Deus seja cristã, seja encarnada, seja Visitação. Os dois pés, sempre em
movimento cordial: de sístole e diástole.
Deus começa sempre
pelo coração; mas logo desce aos pés. Em outras palavras: Deus põe pés no
coração. Maria recebeu do anjo a notícia que sua prima Isabel estava esperando
um filho e já estava no sexto mês de gestação. Não foi necessário que Isabel
pedisse a Maria e solicitasse seus serviços. O amor descobre as necessidades
dos outros; o amor não necessita que ninguém lhe peça favores, nem que alguém
lhe solicite serviços. Maria não esperou o chamado de Isabel. Porque o amor não
espera, antecipa. O amor sempre tem pressa, não sabe esperar. O amor não fica em
sentimentos; o amor se faz gesto, atitude, caminho e serviço. “O amor
consiste mais em obras que em palavras” (S. Inácio).
O amor põe o coração
em caminho; o coração põe pressas aos pés. Amor, coração e pés se fazem serviço
aos demais. Quando amamos, nossos pés se põem em caminho: levar alegria aos
outros. Por isso, nesta visita e neste encontro, todas saltam de alegria: João
salta de alegria no ventre de Isabel. Isabel salta de alegria e extravasa seu
júbilo. Maria salta de alegria e entoa seu hino de reconhecimento e
agradecimento. Isabel encheu-se de surpresa ao ver a surpreendente Maria diante
de si. E não pode segurar sua alegria; por isso, também explodiu em um grito de
louvor e reconhecimento.
Nosso mundo está
carente de Visitação, de uma vida cristã com iniciativa e experiência de
encontros, que deixe suas seguranças, que saia, atenta às necessidades dos
demais, que cuide da vida que há nela e onde queira que esteja germinando ou
tenha possibilidades de acontecer; assim entendemos a vida cristã vinculada com
a terra e o cuidado da casa comum.
Encontrar-nos é
construir pontes e derrubar muros, é desafiar a cultura do desencontro, da
fragmentação e do descarte. Os encontros mudam nossa vida e vamos descobrindo
nossa identidade através deles. Eles nos colocam em atitude de êxodo, de saída,
de Visitação. O encontro, quando se dá a partir da experiência de Deus, que é
contemplação e saída, se torna autêntica e solidária profecia.
Texto bíblico:
Lc 1,39-56
Na oração: é indispensável
situar-se na cena da Visitação; escutar as duas mulheres que conversam entre
si; seguir seus passos, proceder como elas, viver hoje o que elas
viveram.
A Visitação é,
portanto, um convite a “cruzar montanhas”, transpassando fronteiras, abrindo
buracos nos ilusórios muros de classe, de cultura, de raça, de gênero, de
religião, etc... Cruzar montanhas, saindo apressadamente ao encontro do outro,
para fazer a experiência de viver, em ritmo de Visitação, o regozijo da vida
divina que habita no humano e se expande na criação inteira.
- Como encarnar o
ícone da Visitação no seu ritmo cotidiano? Há lugar para encontros
surpreendentes?
Pe. Adroaldo Palaoro
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