sábado, 17 de agosto de 2019



 “Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judéia”

A vida de Maria na terra foi um percurso, um itinerário para a plenitude humana, em comunhão com todos os outros, através de seu filho Jesus. Pois bem, cumprido esse percurso vital, que havia começado no seu nascimento, Maria foi assumida (assunta) à glória de Deus, que se identifica com a Ressurreição e Ascenção de Cristo. Maria “foi aspirada para dentro de Deus”, absorvida pela Vida.
 Este dogma afirma que Maria culminou sua vida em Deus, por meio de Jesus, “em corpo e alma”, ou seja, como pessoa histórica, em comunhão com as demais pessoas que estiveram e continuam estando implicadas em sua vida. A plenificação da vida de Maria na Assunção não é triunfo da passividade, mas do amor solidário e da preocupação pelos outros. A Assunção é o céu da ternura maternal, a proximidade amistosa, o serviço gratuito... Por um lado, Maria chegou ao cume: contempla Deus face a face, vive no interior da família divina. Por outro lado, Maria está assumindo uma nova função: ela começa sua tarefa de ajuda maternal em favor de todos os homens e mulheres, especialmente dos mais pobres e frágeis.
 Na festa da Assunção a Igreja nos revela a plenificação final da obra de Deus na mulher que não opôs nenhuma resistência à sua ação. Deus havia empreendido um caminho de salvação e ela, com seu sim, consentiu a esse projeto salvífico. Sua original maneira de colaborar consistiu em deixar Deus fazer, e por isso reco-nhece: “O Poderoso fez em mim maravilhas”.
El Greco A Assunção não é um privilégio excepcional exclusivo de Maria, mas o símbolo de nosso próprio destino, quando seremos “assumidos” na vida definitiva. Este dogma pode ser entendido desde um duplo enfoque: com ela acontece algo único, e com ela acontece aquilo para o qual todos estamos destinados.

Ela é a Humanidade que já chegou à plenitude e é a vida que vence a morte. Sua Assunção é como uma ampliação da grande Ascenção de Jesus. Maria, como Imaculada e Assunta, é um ícone de esperança. Com isso, nossa vida se torna caminho de esperança jubilosa; com Maria já entramos, de algum modo, no céu de Deus, no futuro da ressurreição plena.

O próprio Papa Pio XII deixou isso claro ao proclamar este ensinamento solene em 1950: “O essencial da mensagem é reavivar a esperança na própria ressurreição”, que consiste em ser assumido no mistério original da Vida da vida. A Assunção não é só um mistério de elevação da Mãe de Deus. É também um mistério de “descida”, pois ela continua sendo humanidade, mas é humanidade carregada de Deus, integrada no mistério trinitário.

Assunção é vida plena antecipada.

Ao falar da Assunção nos referimos à plenitude final e à culminação do processo vital de Maria. Mas a meta supõe sempre um caminho, um percurso. O Evangelho de hoje nos apresenta Maria, desde o começo, “caminhando depressa”, de Nazaré da Galileia até às montanhas da Judéia para chegar à casa de Isabel e ajudá-la; naquela primeira “meta” de seu percurso recebeu dos lábios da prima a primeira bem-aventurança: “Feliz é tu que acreditaste...” E aquela saudação foi uma antecipação da felicitação que Maria recebeu no final definitivo de sua trajetória.
 Toda a vida de Maria consistiu em dirigir-se apaixonadamente para essa meta definitiva que não podia ser outra coisa que a prontidão para o serviço a quem dela precisasse. É oportuno recordar o que dizia o Vat. II: Maria é o modelo e exemplar mais acabado de toda vida cristã. Foi aquela que mais conheceu, amou e seguiu Jesus Cristo.
 Quando falamos de Assunção, empregamos um termo que desperta imagens de movimento, de atração para o alto, de impulso ascensional; nosso olhar é atraído para a altura, e vemos Maria elevada para essa dimensão que chamamos “céu”. Essa maneira de vê-la, no entanto, não a afasta de nossa experiência, senão que nela se faz transparente o destino da humanidade inteira: em Maria vemos agora o cumprimento antecipado da transfiguração de nossa existência.

Ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos, dos pobres e excluídos... Maria foi glorificada porque se fez radicalmente “humana”. Por isso, Deus a engrandeceu plenamente.
 Crer na Assunção de Maria implica crer na exaltação dos pequeninos e humilhados, dos pobres esquecidos, dos injustiçados sem voz, dos sofredores sem vez, dos abandonados sem proteção, dos misericordiosos descartados, dos mansos violentados... 
Vivemos já a Assunção quando não nos deixamos determinar por uma vida estreita e atrofiada, presa pelos apegos... Somos “assuntos” quando sonhamos, buscamos e ativamos todos os dinamismos humanos de crescimento e de expansão em direção aos outros. Nós nos “elevamos” quando “descemos” em direção à humanidade ferida e excluída. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da realidade pessoal e social, sendo presença servidora.
 Somos chamados a nos situar, como Maria, diante do olhar salvífico de Deus: “... porque Ele olhou para a humildade de sua serva”; deixar-nos “olhar” por Deus para sentir-nos acolhidos e envolvidos em sua ternura, seu perdão e seu amor incondicional; deixar que seu olhar faça cair os fardos que carregamos às costas e nos possibilite experimentar a assombrosa liberdade de não ter que representar papéis, nem acumular méritos, nem dissimular fragilidades; sentir-nos envolvidos na proteção cálida de um amor que nos acolhe e desata em nós ricas possibilidades de existência e crescimento; emigrar dos velhos “chãos” que sustentavam nosso eu, para encontrar-nos ancorados em outro centro e respirando outro ar; fazer a experiência da relação filial que nos pacifica e expande o coração. A partir daí, tomar de novo contato com a realidade e nos dirigirmos a ela com um olhar novo e um coração acolhedor: a de quem se sabe “filho” e “irmão”. E quem se reconhece filho sob o olhar do Pai, todos se tornam irmãos.

Celebrar o mistério da Assunção de Maria, portanto, é também um convite a viver nessa dinâmica do compromisso e não da resignação, da esperança solidária e não da “espera passiva”. 

Este mistério celebrado por toda a Igreja é um mistério profundamente enraizado no coração do ser humano, que quer viver sempre, permanecer, ser imortal. Por isso somos convidados a continuar nesse “deslocamento” contínuo a serviço da vida.

 ASSUNÇÃO É MISSÃO.

 
“Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?”
Na festa da Assunção, a liturgia nos propõe aprofundar o sentido do encontro a partir da contemplação deste horizonte inspirador: a Visitação. Os ícones que ao longo dos séculos expressam esta visita, esta saudação, nos apresentam duas mulheres vinculadas, unidas por um abraço, por um beijo, por uma mesma alegria. Em seu modo de entrar em comunhão, em sua maneira de dialogar e de se alegrar, elas se revelam mestras para nós, para nossa humanidade fragmentada que aspira viver a “cultura do encontro”. 
A cena apresentada por Lucas nos deixa na agradável e desafiante companhia de Maria e Isabel: duas mulheres, dois ventres cheios de vida; duas mulheres cheias de Deus; duas mulheres em um mesmo encontro. Ambas estão grávidas e de um modo surpreendente. As duas esperam filhos muito especiais; sentem que carregam em seus ventres uma novidade que as supera. As duas tem “um corpo abençoado” e um ventre fecundo, sinal e realidade da ação de um Deus que é Vida. 
Duas mulheres com duas missões diferentes: uma, portadora do Messias, e outra, portadora daquele que preparará os caminhos. Duas mulheres diferentes, mas cada uma com sua experiência de Deus. Uma, a experiência de Deus em um seio virginal; a outra, a experiência de Deus em um seio seco e estéril. No encontro entre as duas, cada uma descobre e reconhece o mistério da presença de Deus na outra. 
O ícone da Visitação contagia e desperta o prazer e a alegria: a do encontrar-se, a do crer e a do servir. Alegria fecunda, já que está ligada a dois nascimentos que vão mudar a história de seu povo e da humanidade. Nesta cena, Deus mesmo se infiltra no cotidiano e naquilo que socialmente não tem maior relevância, ou seja, a vida diária de duas mulheres: Maria e Isabel. Quebra-se assim a centralidade do Templo. Elas festejam as maravilhas do Senhor em um lugar simples, numa região montanhosa, num caminho e numa casa de família simples. O maravilhoso e extraordinário tem lugar no ordinário e humilde. Ali se celebra a vida chegada e por chegar. As protagonistas da cerimônia são duas simples mulheres. 
Neste maravilhoso acontecimento tudo é encontro, junta-se o Antigo e o Novo Testamento, a juventude e a idade madura. As duas mulheres estão profunda e intimamente vinculadas entre si. Com elas e delas nasce o tempo novo, o do Reino, o de Jesus. Tem-se a impressão de viver um momento culminante da história. Elas nos conduzem a agradecer a capacidade feminina de deixar transparecer o Mistério que nos habita, de despertar-nos uns aos outros para essa Vida cuja presença reconhecemos em nosso interior. 
Maria, aquela que sente o êxodo de Deus, saindo de si mesmo, para encarnar-se no seu seio virginal, e que a move a pôr-se em caminho, saindo de si mesma, porque o serviço aos outros a apressa. 
Maria é a Mulher que inaugura e estabelece os critérios para encontrar-se com o Senhor e com os(as) demais. Sua capacidade de encontro parte de uma experiência de profunda interioridade; interioridade visitada por Deus e, portanto, fecundada por seu olhar cheio de amor e ternura, cheio de compaixão pela humanidade e pela criação. Só a partir de uma interioridade fecunda se dá a possibilidade dos encontros mais verdadeiros.
Na Laudato si (n. 240) o Papa Francisco nos diz que “a pessoa humana mais cresce, mais amadurece e mais se santifica à medida que entra em relação, quando sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim, assume em sua própria existência esse dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a criação. Tudo está conectado, e isso nos convida a amadurecer uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade”.
O dogma da Assunção, festa do encontro pleno, nos revela que precisamos nos converter à cultura do encontro em todos os sentidos. Maria foi “assumida” para o encontro definitivo com Deus porque foi presença que inspirava e proporcionava encontros humanizadores. Ela “subiu” porque “desceu” ao encontro dos preferidos do Pai. 
Maria, na cena da Visitação, passa da interioridade ao acontecer, à história, ao encontro. É assim como se dá uma autêntica experiência de Deus. Ela nos mostra que tal experiência tem dois pés: um posto na experiência do amor de Deus que nos visita, e outro posto sempre no caminho que precisamos percorrer para ir ao encontro dos demais. Os dois pés são indispensáveis para que a experiência de Deus seja cristã, seja encarnada, seja Visitação. Os dois pés, sempre em movimento cordial: de sístole e diástole.
Deus começa sempre pelo coração; mas logo desce aos pés. Em outras palavras: Deus põe pés no coração. Maria recebeu do anjo a notícia que sua prima Isabel estava esperando um filho e já estava no sexto mês de gestação. Não foi necessário que Isabel pedisse a Maria e solicitasse seus serviços. O amor descobre as necessidades dos outros; o amor não necessita que ninguém lhe peça favores, nem que alguém lhe solicite serviços. Maria não esperou o chamado de Isabel. Porque o amor não espera, antecipa. O amor sempre tem pressa, não sabe esperar. O amor não fica em sentimentos; o amor se faz gesto, atitude, caminho e serviço.  “O amor consiste mais em obras que em palavras” (S. Inácio). 
O amor põe o coração em caminho; o coração põe pressas aos pés. Amor, coração e pés se fazem serviço aos demais. Quando amamos, nossos pés se põem em caminho: levar alegria aos outros. Por isso, nesta visita e neste encontro, todas saltam de alegria: João salta de alegria no ventre de Isabel. Isabel salta de alegria e extravasa seu júbilo. Maria salta de alegria e entoa seu hino de reconhecimento e agradecimento. Isabel encheu-se de surpresa ao ver a surpreendente Maria diante de si. E não pode segurar sua alegria; por isso, também explodiu em um grito de louvor e reconhecimento. 
Nosso mundo está carente de Visitação, de uma vida cristã com iniciativa e experiência de encontros, que deixe suas seguranças, que saia, atenta às necessidades dos demais, que cuide da vida que há nela e onde queira que esteja germinando ou tenha possibilidades de acontecer; assim entendemos a vida cristã vinculada com a terra e o cuidado da casa comum. 
Encontrar-nos é construir pontes e derrubar muros, é desafiar a cultura do desencontro, da fragmentação e do descarte. Os encontros mudam nossa vida e vamos descobrindo nossa identidade através deles. Eles nos colocam em atitude de êxodo, de saída, de Visitação. O encontro, quando se dá a partir da experiência de Deus, que é contemplação e saída, se torna autêntica e solidária profecia.
Texto bíblico:  Lc 1,39-56
Na oração: é indispensável situar-se na cena da Visitação; escutar as duas mulheres que conversam entre si; seguir seus passos, proceder como elas, viver hoje o que elas viveram. 
A Visitação é, portanto, um convite a “cruzar montanhas”, transpassando fronteiras, abrindo buracos nos ilusórios muros de classe, de cultura, de raça, de gênero, de religião, etc... Cruzar montanhas, saindo apressadamente ao encontro do outro, para fazer a experiência de viver, em ritmo de Visitação, o regozijo da vida divina que habita no humano e se expande na criação inteira.
- Como encarnar o ícone da Visitação no seu ritmo cotidiano? Há lugar para encontros surpreendentes? 
Pe. Adroaldo Palaoro sj




domingo, 11 de agosto de 2019


ESPERAS CONSTRUTIVAS


 O texto do evangelho deste domingo faz parte de um amplo contexto, que começou no domingo passado com a petição de alguém a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo”. A partir daí, Lucas revela uma longa conversação de Jesus com os discípulos e toca diversos temas de difícil harmonização. Naturalmente se trata de pensamentos dispersos que o evangelista organiza à sua maneira para ir aclarando as exigências de Jesus, na formação do seu discipulado.
No domingo passado, Jesus nos pedia para não colocar nossa confiança nas riquezas; hoje, Ele nos diz em quem devemos confiar para que nossa vida seja autêntica. Confiadamente, é preciso ativar todos os recursos de nosso ser, conscientes que Deus atua em nosso interior, e que só através da sintonia com essa presença interna nossa vida avança, amadurece e se plenifica. Nosso Deus não é o “Deus todo-poderoso” distante, mas o fundamento de nossa vida: afinal, somos morada do Deus sempre surpreendente.
A condição humana pode ser definida em termos de “espera radical”.
O nosso coração está habitado por “esperas” de todo gênero. São tantas as esperas na vida humana!
Está todo mundo esperando. É através das esperas que nos fazemos humanos.
Somos feitos disso: desejo, súplica, anseio, abertura, busca, esperança...
espera está ligada ao verbo “esperançar”: espera ativa, aberta ao futuro imprevisível, ao novo plenificante...; ela cria o espaço vital que permite a realização do possível.
Quem espera faz-se disponível, acolhedor, abre espaço para o mistério do outro que lhe vem ao encontro; quem espera, acolhe o diferente. Os intolerantes e preconceituosos não esperam nada: amargam a vida no fechamento, no dogmatismo e no moralismo.
Esperar é passar do “tempo fechado” ao “tempo aberto”, da fugacidade do “ter” à plenitude do “ser”, do “lugar estreito” ao “lugar amplo”, do “medo paralisante” à “coragem criativa”...
Durante a espera, a imaginação trabalha e cria mil momentos insuperavelmente felizes.
E quando acontece o encontro entre o desejo e a realização, entre a espera e o esperado, entre o vazio e aquilo que plenifica, explode uma alegria incontida. Uma mistura de festa com ternura e boas emoções solidificam esta certeza: valeu a pena esperar!
A vida que é feita de tantas esperas, também é “esperada”. Somos continuamente tentados a pensar que somente nós esperamos e esquecer que também Deus nos espera. A espera divina é paciente, compreensiva e compassiva.
Em nossas esperas, somos ansiosos e impacientes; fazemos da espera um tempo “em branco”, vivendo como se nada estivesse para acontecer, mergulhados no tempo rotineiro, sem abertura à surpresa.
Não sabemos esperar: basta ir às salas de esperas dos hospitais e consultórios para comprovar como as pessoas se desesperam porque não lhe atendem à hora marcada. Perdemos a paciência porque pretendemos que tudo seja imediato e a nosso gosto. Não suportamos uma contradição.
O evangelho deste domingo pode ser uma boa oportunidade para recordar isto. Exercitar-se na arte de esperar com paciência. Desejar, dar asas à imaginação sobre aquele que vai chegar, sem que esteja em nossa mão adiantar ou controlar sua chegada.
Deus, pelo contrário, nos espera incansavelmente. Por isso se “humanizou”. Não nos esperou com prepotência, tampouco com soberba. Esperou na humildade, no húmus da vida, afundando os pés na nossa existência.
Mas Deus não precisa vir de nenhuma parte. Ele está chamando sempre, mas a partir de dentro de cada um de nós; é a partir de dentro que Ele se faz visível em nossas relações com os outros.
Somos nós que projetamos Deus fora e distante de nós, que nos ameaça com prêmios e castigos, que aparece de surpresa para nos pegar em flagra. O medo de Deus brota quando o imaginamos fora de nós. “Deus de fora” é o Deus idealizado, que alimenta medo, ameaça com inferno, que castiga.
No evangelho deste domingo, Jesus revela “Deus em saída” até o ser humano e des-vela o ser humano em saída até Deus. E o encontro entre ambos é o que o Evangelho propõe. O encontro de pessoas que se esperavam: como nos aeroportos-rodoviárias, desejando a chegada do(a) amigo(a); ou nas salas de urgências dos hospitais desejando saber a situação do enfermo familiar.
Essas são esperas autênticas: desejantes, emocionantes, inocentes... porque esperam uma pessoa.
Essa deve ser a disposição de uma “Igreja em saída” e que não aguarda em uma sala de espera.
O decisivo é entrar em sintonia com o Deus presente em nós; “esperar” significa estar desperto para conectar-nos com essa presença, sempre nova e sempre cheia de surpresa. Deus, ao mesmo tempo, está sempre presente e sempre chegando de maneira surpreendente. Ele é dom e pura gratuidade. Aqui não há mais lugar para o medo, a culpa, a angústia. Quem entra em sintonia com Ele e se deixa conduzir por Ele não atua por mérito, mas por pura gratuidade.
O evangelho de hoje, através de parábolas, nos apresenta alguém que não vive a relação com Deus internamente. O que acontece com ele? As consequências são funestas, provocadas não por Deus, mas pela pessoa mesma: irresponsabilidade no serviço, violência com os outros, auto-agressão, partindo-se ao meio... Uma experiência infernal.
Um cristão é uma pessoa que vive em “estado de espera”.
O importante é isto, o “estado”, o processo, a continuidade, o estar sempre a tempo, sempre alerta, sempre preparado. A vida inteira se converte numa contínua espera: o equilíbrio, o contato, a liberdade, a generosidade, cada nervo sintonizado, cada músculo em forma. E assim entramos na vida e enfrentamos mil situações.
Cada pequeno encontro é uma satisfação em si mesma e uma preparação para a seguinte. Sempre avante. Avanço que pode ser mudado de direção a cada instante.
“Não morras na sala de espera” (Hervey Cox). As “salas de espera do espírito” estão cheias de pessoas que simplesmente estão ali, ali moram e permanecem, ali vivem e morrem. O fato de já estar na “sala de espera” lhes dá a impressão de que já fizeram alguma coisa, já começaram a viagem.
As esperas têm rosto de criatividade, de itinerância, de abertura ao diferente. Elas põem em ação nossos melhores recursos internos; elas alimentam uma contínua atitude de busca.
Só assim o coração estará mais preparado para a chegada do Momento cume, quando deixaremos “Deus ser Deus” na nossa morada interior. 

Para meditar na oração:

Você é um impaciente? Não suporta esperar a fila no cinema? Fica nervoso quando o ônibus atrasa mais de cinco minutos? Espera que lhe respondam as mensagens de WhatsApp em questão de segundos? Ou quando alguém chega um pouco atrasado no encontro marcado?...
E, no entanto, você sabe que o importante requer seu tempo, que os bons pratos são cozidos a fogo lento.
A paciência não é uma palavra da moda hoje em dia. E talvez por isso é das mais necessárias. A paciência supõe esperar e respeitar os tempos. Supõe desejar a chegada do outro e não ter mais que fazer a não ser esperar. Desejar e esperar.
- Como você vive suas “esperas cotidianas?”
Os nossos antepassados, na fé, correram enormes riscos; eles confiaram na Palavra de Deus que desorienta e que desinstala. Eles não tiveram medo de partir para o estrangeiro, de mudar seus hábitos e de se colocar a caminho por estradas ainda não trilhadas, por caminhos inexplorados. Ao seu exemplo, podemos não fazer o mesmo?Cada pequeno encontro é uma satisfação em si mesma e uma preparação para a seguinte. Nossos encontros, se vividos em plenitude, nos preparam para o grande encontro face a face com o Criador e Senhor.
Resultado de imagem para BORDAS E ARABESCOSNão percamos a chance de sempre sermos bons.




2ª leitura: Hb 11, 1-2.8-19
Evangelho: Lc 12, 32-48
Eis o texto.
Nós continuamos no caminho que leva para Jerusalém, com Cristo e, no caminho, somos interpelados pela Palavra de Deus que nos questiona sobre a qualidade da nossa fé. Onde estamos como cristãos e cristãs? Como crentes? Como lideranças na Igreja? A carta aos Hebreus, da segunda leitura de hoje, nos recorda que: “A fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se veem” (Hb 11, 1). Estamos convencidos disso? Na carta aos RomanosPaulo chega inclusive a nos convidar a “esperar contra toda a esperança” (Rm 4, 18). E, portanto, quando olhamos para a Igreja de hoje, a Igreja que somos e que formamos, podemos nos perguntar se não estamos em pane, em falta de fé, porque a nossa Igreja não se arrisca mais; ela se assenta sobre seus dogmas e não avança mais nos caminhos do Evangelho, cujos caminhos ainda não estão demarcados ou previamente traçados. Felizmente, o Papa Francisco traz um pouco de frescor à nossa Igreja. Ele nos ensina que o medo, a certeza da fé e o autoritarismo abusivo são freios no caminho da vida cristã.
1. O medo
O Cristo do evangelho de Lucas diz aos seus discípulos: “Não tenha medo, pequeno rebanho, porque o Pai de vocês tem prazer em dar-lhes o Reino” (Lc 12, 32). Infelizmente, esse versículo foi, muitas vezes, mal interpretado: uma certa direita religiosa que acredita ter a verdade, porque faz parte do pequeno rebanho, do pequeno resto de Israel, e que impõe sua verdade mesmo quando permanece sozinha para crer nisso. Eu retorno ao Evangelho: o que Lucas nos diz é uma promessa que nos é feita. Prometer é dizer que será dado. É dar sua palavra, retardando o momento do dom efetivo. É confiar no outro, e convidá-lo para a confiança recíproca.
É isso que nos recorda o autor da carta aos Hebreus, quando escreve: “Pela fé, Abraão, chamado por Deus, obedeceu e partiu para um lugar que deveria receber como herança. E partiu sem saber para onde” (Hb 11, 8). Mas mais do que isso, diz a carta aos Hebreus, falando de Abraão, de Sara, de Isaac e de Jacó: “Todos eles morreram na fé. Não conseguiram a realização das promessas, mas só as viram e saudaram de longe: e confessaram que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra” (Hb 11, 13). Isso quer dizer que os nossos antepassados, na fé, correram enormes riscos; eles confiaram na Palavra de Deus que desorienta e que desinstala. Eles não tiveram medo de partir para o estrangeiro, de mudar seus hábitos e de se colocar a caminho por estradas ainda não trilhadas, por caminhos inexplorados. Ao seu exemplo, podemos não fazer o mesmo?
2. A certeza da fé
A fé nunca pode ser uma certeza. A única certeza que temos é não ter nunca certeza de nada. Doris Lussier dizia: “Eu não disse: eu sei; eu disse: eu creio. Crer não é saber. Eu saberei quando verei, como vocês outros. Se eu tenho que saber... E então, depois de tudo, como eu disse um dia a um amigo que é descrente: tu sabes, as nossas respectivas opiniões sobre os mistérios do além não tem grande importância. O que nós cremos ou o que nós não cremos, isso não muda absolutamente nada a verdade da realidade: o que é, é... e o que não é, não é, um ponto, é tudo. E temos de conviver com isso”. Doris Lussier descrevia sua fé da seguinte maneira: “Eu só tenho uma pequeníssima fé natural, frágil, vacilante, resmungona e sempre inquieta. Uma fé que se parece bem mais a uma esperança que a uma certeza”. E a esperança é a fé no seu melhor, dizia Charles Péguy, porque a esperança nos faz crer que amanhã será melhor, quando hoje tudo está mal. Eis a maravilha da esperança!
É a esperança que nos permite “estar com os rins cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12, 35). Porque, para esperar o senhor voltar das núpcias (Lc 12, 36), é preciso saber esperar. Se estivermos certos de seu retorno, da data e da hora em que chegará, não precisamos mais esperar; saberemos exatamente como será seu retorno. É por isso que o evangelista Lucas formula esta bem-aventurança: “Felizes dos empregados que o senhor encontra acordados quando chega. Eu garanto a vocês: ele mesmo se cingirá, os fará sentar à mesa, e, passando, os servirá” (Lc 12, 37). Para vigiar, basta esperar; caso contrário, para que serve vigiar? A certeza é o que há de mais prejudicial à fé, porque a certeza acaba por ter razão da esperança.
3. O autoritarismo abusivo
Lucas escreve: “Então Pedro disse a Jesus: ‘Senhor, estás contando essa parábola só para nós, ou para todos?” (Lc 12, 41). Por meio de outra parábola, o evangelho parece dizer que os primeiros envolvidos são justamente aqueles que exercem uma responsabilidade dentro da Igreja; com a questão de Pedro, o Senhor ressuscitado, mestre da Igreja, interpela todos aqueles que têm por missão dar o grão da Palavra ao pequeno rebanho. Sobre o administrador fiel e sensato, que o senhor, na sua chegada, encontrará em seu trabalho, diz: “Em verdade, eu digo a vocês: o senhor lhes confiará a administração de todos os seus bens” (Lc 12, 44). Mas se os responsáveis pela Igreja sofrem do autoritarismo abusivo e se metem a rejeitar, condenar, marginalizar e excluir as mulheres e os homens que lhes são confiados, o mestre lhes tirará todas as responsabilidades: “Por isso eu lhes afirmo: o Reino de Deus será tirado de vocês, e será entregue a uma nação que produzirá seus frutos” (Mt 21, 43). Quanto mais se é responsável na Igreja, mais se deve produzir e dar os frutos: “A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido” (Lc 12, 48b).
Para finalizar, gostaria de compartilhar com vocês a bela reflexão do exegeta francês Jean Debruynne sobre o evangelho de hoje: Um coração em desejo! “Sejam como pessoas que esperam... Mas, quem ainda pode ter tempo para esperar? Por acaso, o tempo não é dinheiro, e, atualmente, não é o tempo o item mais caro? Não são os prazos os mais ruinosos? Está na hora de não mais confundir espera com impaciência. A espera do Reino de Deus não é aquela de esperar o trem ou o avião partir. A espera do Reino de Deus é um coração em desejo e não o medo de se atrasar. Aquele que espera é aquele que ainda encontra no fundo de si um pouquinho de esperança acesa”.