ESTAR NO MUNDO À
MANEIRA DE JESUS
...e os enviou dois a dois, na sua frente, a
toda cidade e lugar aonde Ele própria devia ir” (Lc 10,1).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho
do 14° Domingo do
Tempo Comum - Ciclo C (07/07/2019) que corresponde ao
texto bíblico de Lucas 10,1-12.17-20.
Ainda carregamos resquícios de
uma falsa visão da santidade como afastamento do mundo e de seus perigos e buscar
refúgio no deserto, nas montanhas ou nos conventos. O(a) santo(a) não se afasta
do mundo para encontrar a Deus; ele(ela) faz a “experiência” do Deus agindo no mundo.
Aí O encontra e caminha com Ele;
o(a) santo(a) é aquele(a) que faz o que Deus faz neste mundo, aquele que faz
com que este mundo seja justo, santo, salvo. O mundo não é só o “habitat” da sua missão: é sobretudo a fonte da sua espiritualidade, o
lugar certo para encontrar a Deus e escutar o Seu chamado.
Pondo-nos na escola do Evangelho,
é aqui, neste mundo, que Jesus nos chama a estender o Reinado do Pai,
trabalhando cada dia como amigos seus que passam, observam, curam, se
compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos.
Apaixonados pelo Reino, nos
apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza,
simplicidade, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala com novos traços
do Deus que buscamos com desvelo. E amando e investigando tudo o que é do
mundo, adoramos o Deus Santo que habita em tudo.
O(a) santo(a) seguidor(a) de
Jesus é aquele(a) que, na liberdade, afirma: “Fora do mundo não há salvação”.
Ele(ela) descobre na realidade do mundo e da história os “sinais
dos tempos” e entra
em comunhão com tudo, porque tudo é “diafania” de Deus. Enraíza sua convicção
nesta visão, nesta mística da presença de Deus em sua obra, na contemplação de
um mundo chamado a re-converter-se em justo e belo, verdadeiro e pacífico,
unido e reconciliado, entranhado em Deus, como no primeiro dia da Criação.
A vocação à santidade ativa em
nós a paixão pelo Reino, mobilizando-nos a levar
adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e
ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
Como seguidores(as) de Jesus,
movidos(as) por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela
é. Trata-se de olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os
sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo,
marcado pela ternura, compassivo e por isso gerador de misericórdia; olhar que compromete
solidariamente.
O(a) discípulo(a)
missionário(a) não
é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que,
movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra,
aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; o mundo já não é percebido como
ameaça ou como objeto de conquista, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz
encontrar. O mundo não é lugar da exploração e da depredação,
mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do encontroinspirador.
Para realizar esta nobre missão,
não podemos permanecer sentados. Seguir Jesus exige de nós uma dinâmica
continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos viver o
chamado do “Rei Eterno” a partir de uma cômoda instalação pessoal. A
disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Corremos o risco de viver em
mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de
hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de
situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o
convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites
politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais
e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo
perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um
mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas
só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que
acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas.
Viver a santidade no mundo de hoje nos move a
encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações…; escutar outros
relatos que trazem muita luz para a nossa própria vida. Olhar a partir de um
horizonte mais amplo, ajuda a relativizar nossos próprios absolutos e
deixar-nos impactar pelos valores presentes no outro.
Escutar de tal maneira que o que
ouvimos penetra na nossa própria vida; isso significa implicar-nos
afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas. Acolher na nossa
própria vida outras vidas; abrir espaços para que as histórias dos excluídos e
diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso
coração.
O encontro com o diferente
possibilita também o encontro consigo mesmo, ou seja, encontrar a própria
verdade. Isso implica em se perguntar pela própria identidade, por aquilo que
dá sentido à própria vida, o impulso por viver de uma maneira cristificada,
conforme os valores do Reino.
Para que haja verdadeiro encontro com o outro, o deslocamento
ex-põe quem se desloca, deixa-o vulnerável e “contaminado” pela realidade que
encontrou. Quando alguém se desloca e se aproxima de realidades diferentes, é
para encontrar, encontrar-se e aprender.
Como
discípulos(as)-missionários(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da
realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para
olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a
presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita, para
encontrar-nos com Ele e trabalhar juntos por seu Reino. O mundo precisa
de místicos(as) santos(as) que descubram onde está
Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
Nós cristãos honramos a santidade
universal sem
fronteiras de raça, de credo, de cultura...
Santidade é
dizer sim à vida; é um caminho a ser percorrido “de
dois em dois”.
Porquê esta insistência em fazer
o caminho ao menos junto a outro(a)? Do envio dos discípulos e discípulas de
dois em dois, podemos tirar duas consequências: uma para os momentos de
fragilidade, de cansaço e de desânimo; a outra para quando nos sobrevém
inesperadamente a luz, a alegria...
Precisamos fazer o caminho em companhia
para poder estendermos a mão quando caímos, para aprender a sustentar
mutuamente... E, também de “dois em dois” para ter alguém ao nosso lado com
quem poder brindar, porque é uma ação que não é possível realizá-la sozinhos.
Celebrar, agradecer, brindar a vida... para isso, quanto mais companheiros(as)
de estrada, melhor.
Para
meditar na oração:
Todas as narrativas acerca do
chamado conservam a marca intencional de um encontrosurpreendente, inesperado e
expansivo: deixar a vida estreita para entrar no amplo espaço de vida proposto
por Jesus.
- Diante de Jesus, que “passa e
chama” a todos, responda: como você vive, hoje, sua missão no trabalho, no seu
ambiente, na sua comunidade? Que sentido você quer dar à sua própria vida?...
em quê gastar suas forças, capacidades? Como viver, no seu cotidiano, sua
vocação de discípulo(a)-missionário(a)?
“Não
levem bolsa, nem sacola, nem sandálias”
A liturgia deste domingo continua a leitura do
texto do domingo passado, sobre o evangelho de Lucas. Ao redor de Jesus estão
vários discípulos e discípulas e Jesus lhesconfia uma
importante missão: aquilo que receberam e vivem por estarem junto a Jesus deve
ser comunicado! A comunicação da Boa Nova não é para um grupo de pessoas
exclusivas, únicas e especialmente escolhidas. Ser missionários do Evangelho é
para todos os cristãos e cristãs que recebem esta mensagem, porque a mensagem
de Jesus é para todas
as pessoas que estão ao nosso lado.
O início do texto diz que Jesus escolhe setenta
e dois discípulos e os envia como missionários, para sua presença salvadora no
meio do povo. Mas este envio está acompanhado de algumas importantes recomendações para
serem tidas em conta por todo missionário em qualquer momento da sua vida e da
vida das comunidades. Jesus sabe que os envia “como cordeiros para o meio de lobos”. Mas devem
fazê-lo com urgência, com simplicidade e com amor. Lembre-se de que este trecho
do evangelho de Lucas situa-se no caminho de Jesus para Jerusalém.
As palavras que Lucas coloca nos lábios de
Jesus, “A colheita é
grande, mas os trabalhadores são poucos”, revela o olhar, a atitude
que o evangelizador/a deve ter. A missão não começa com eles/as; antes de
chegar a qualquer lugar, Deus já está trabalhando no coração desse povo. Ele é o grande semeador, que
não só “lança” as sementes do Reino, mas também o mantém com seu amor e graça.
Por isso, o evangelista fala que a colheita é grande, mas é necessário ter
olhos para descobrir seus frutos.
A seguir disse-lhes: Não levem bolsa, nem sacola, nem
sandálias. Estas são três recomendações fundamentais: a bolsa faz
referência ao dinheiro, a sacola à
alimentação e as sandálias à
vestimenta. Desta forma os cristãos são pessoas livres, sem ficar presos e
carregados daquilo que no final incomoda,
mas que contribui para serem missionários. No momento histórico que o evangelho
de Lucas foi escrito, existiam em Roma muitas formas de religião, de
espiritualidade, de adoração aos deuses que eram usadas como forma de sustento,
para obter dinheiro. Jesus apresenta-lhes com muita clareza que sua mensagem
gera liberdade naquele que a comunica e nas pessoas que a recebem. Não é um
trabalho, é uma vida que se gesta nas pessoas. Hoje ao nosso redor também há
muitas formas de religião, de espiritualidade, que usam a simplicidade e a fé
das pessoas para seu próprio bem-estar e para obter benefícios pessoais. Por
isso somente pessoas livres são capazes de comunicar realmente a Boa Nova do
Reino!
O cristão missionário torna-se testemunha desta
proposta de salvação que liberta e que é para todos os homens e mulheres ao
longo da história. É uma tarefa que se realiza em comunidade, não é individual.
A comunidade toda é testemunho de vida que salva e gera mais vida.
O evangelho narra que os discípulos/as são
enviados dois a dois, porque a Bíblia não reconhece significação à afirmação de
uma só pessoa! Para ela não há mais testemunho que o comunitário (cfr. Dt
17,6;19,15), ainda que a comunidade fique reduzida a duas pessoas.
A missão é urgente e nada pode freá-la: não
parem no caminho. Os/as missionários/as não devem forçar ninguém para que os
escutem, mas têm o dever de anunciar a boa nova do Reino, todos/as têm direito
a escutar sua proposta de Vida. A mensagem central do Reino de Deus é
a paz,
no sentido abrangente que esta palavra tem na Bíblia: a harmonia total entre
Deus e os seres humanos e dos seres humanos entre si.
Olhamos ao nosso redor. Quanta necessidade de
paz tem nosso mundo, nosso país! E o Reino está ali nesse mundo, buscando
crescer. Temos olhos para vê-lo? Temos ousadia para colaborar na sua luta pela vida e dignidade de
todos/as e tudo?
Jesus autorizou, com seu poder, a primeira
comunidade a realizar o mesmo que ele fazia. É interessante que Jesus não
enviou ninguém para falar sobre ele ou trazer as pessoas para ele, mas
disse-lhes que podiam fazer exatamente o que ele fazia, podiam curar um ao
outro, compartilhar a sua comida e, por conseguinte, trazer o Reino para o seu
meio!
Hoje o Ressuscitado pelo seu Espírito continua
no meio de sua comunidade, enviando-a permanentemente para continuar o
movimento do Reino de Deus. Viver
essa missão é a
alegria dos/as discípulos/as, porque podem, em seu agir
missionário, contemplar a ação de Deus, agindo em sua pequenez, obrando
maravilhas, milagres!
Podemos perguntar-nos: quais são os milagres que
vemos acontecer através da ação de nossa comunidade eclesial, de tantos homens
e mulheres cristãos/as ao longo do mundo?
Oração
Dá-nos, Senhor, aquela Paz inquieta que
denuncia a
Paz dos cemitérios e a Paz dos lucros fartos.
Dá-nos a Paz que luta pela Paz!
Paz dos cemitérios e a Paz dos lucros fartos.
Dá-nos a Paz que luta pela Paz!
A Paz que nos sacode com a
urgência do Reino.
A Paz que nos invade, com o vento do Espírito,
a rotina do medo, o sossego das praias
e a oração de refúgio.
A Paz que nos invade, com o vento do Espírito,
a rotina do medo, o sossego das praias
e a oração de refúgio.
A Paz das armas rotas na
derrota das armas.
A Paz do pão da fome de justiça,
a Paz da liberdade conquistada,
a Paz que se faz “nossa” sem cercas nem fronteiras,
que tanto é “Shalom” como “Salam”,
perdão, retorno, abraço...
A Paz do pão da fome de justiça,
a Paz da liberdade conquistada,
a Paz que se faz “nossa” sem cercas nem fronteiras,
que tanto é “Shalom” como “Salam”,
perdão, retorno, abraço...
Dá-nos a tua Paz, essa Paz marginal que
soletra
Em Belém e agoniza na Cruz e triunfa na Páscoa.
Dá-nos, senhor, aquela Paz inquieta,
que não nos deixa em paz!
Em Belém e agoniza na Cruz e triunfa na Páscoa.
Dá-nos, senhor, aquela Paz inquieta,
que não nos deixa em paz!
Pedro Casaldáliga
III)«PONHAM-SE A CAMINHO» PORTADORES DO
EVANGELHO
Mesmo que o esqueçamos, duma e
outra vez, a Igreja
está marcada pelo envio de Jesus. Por isso é perigoso
concebê-la como uma instituição fundada para cuidar e desenvolver sua própria
religião. A imagem de um movimento profético que caminha pela história segundo
a lógica do envio responde melhor ao desejo original de Jesus: sair de si
mesmo, pensando nos outros, servindo ao mundo a Boa Nova de Deus. «A Igreja não
está aí para si mesma, mas para a humanidade» (Bento XVI).
Por isso, hoje, é tão perigosa a
tentação de nos voltarmos sobre os nossos próprios interesses, o nosso passado,
as nossas aquisições doutrinais, as nossas práticas e costumes. Mais ainda,
todavia, se o fazemos endurecendo a nossa relação com o mundo. Que é uma Igreja rígida, anquilosada,
encerrada em si mesma, sem profetas de Jesus nem portadores do Evangelho?
"Quando entrarem numa
cidade... curem os doentes que nela houver e digam ao povo: ‘O Reino de Deus
está próximo de vocês!"
Esta é a grande notícia: Deus está
próximo de nós animando-nos a fazer mais humana a nossa vida. Mas não basta
afirmar uma verdade para que seja atrativa e desejável. É necessário rever a
nossa atuação: que é que pode levar hoje as pessoas até ao Evangelho? Como podem captar Deus como algo novo e
bom?
Seguramente, falta-nos amor ao
mundo atual e não sabemos chegar ao coração do homem e da mulher de hoje. Não basta predicar sermões desde o
altar. Temos que aprender a escutar mais, acolher, curar a
vida dos que sofrem... só assim encontraremos palavras humildes e boas que
aproximem esse Jesus cuja ternura insondável nos coloca em contato com Deus, o
Pai Bom de todos.
«Quando entrarem numa casa,
digam primeiro: Paz a esta casa»
A Boa Nova de Jesus comunica-se
com respeito total, desde uma atitude amistosa e fraterna, contagiando paz. É
um erro pretender impor a partir da superioridade, da ameaça ou do
ressentimento. É antievangélico tratar sem amor as pessoas só porque não
aceitam a nossa mensagem. Mas, como o aceitarão se não se sentem compreendidos
por aqueles que se apresentam em nome de Jesus?
PAGOLA