Retiro de fevereiro 2020
INÍCIO DA QUARESMA: cinzas que
dão vida
“E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará
a recompensa”
(Mt 6,4)
Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso
Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2020, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de
viver, onde a verdadeira liberdade terá a chance de se expressar.
Quaresma pode ser escola de vida para o restante do
ano; é tempo favorável para “ordenar a própria vida”na direção do sonho
de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento”
aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações
vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
Nem sempre
sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita,
estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”... O dinamismo do
Seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida,
possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si
mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração.
O seguimento proporciona vigor inesgotável, a vida se destrava e
torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade,
consciência, amor, arte, alegria, compaixão....
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê
no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de
viver como viveu Jesus de Nazaré
Distanciar-se da
vida superficial-consumista e eleger a vida plena, profunda, comprometida: aqui
está o sentido do “percurso quaresmal”
Em sintonia com toda as comunidades cristãs somos chamados a viver o
“tempo quaresmal” sempre de ma-neira nova e inspiradora. O centro de nossa vida
é Jesus Cristo, sua pessoa, sua
mensagem, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu
seguimento é sempre rico e surpreendente. Muitas vezes, corremos o risco de
viver o tempo litúrgico da Quaresma como uma celebração rotineira, algo já
conhecido.
Contemplando Jesus Cristo, descobrimos também quem somos nós. Ele nos
interpela: que queremos fazer de nossa vida? Como queremos viver? Para quê e
para quem vivemos?...
Nesse sentido, através da Campanha da Fraternidade, a Igreja no Brasil
nos motiva a viver a Quaresma como um tempo privilegiado para dar um novo
sentido à nossa vida. Através do tema “Vida, dom e Missão” e do lema “Viu,
sentiu compaixão e cuidou dele”, somos movidos a desatar todas as ricas
possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais
profundo de nossa interioridade.
A imagem de
Jesus, presente junto às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa
própria inte-rioridade e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal
“ponto morto”, de seus limites estreitos e cons-tituindo-a como vida expansiva em direção a novos
horizontes.
Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” para, como Ele,
dar a Deus o lugar central de nossa vida. A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir
em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de re-construção de nós mesmos
(conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão,
mais partilha, mais solidariedade...).
O Evangelho da 4ª.
feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e
jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo
modo de viver e de proceder de Jesus.
São três gestos que nos humanizam e tornam a vida
mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã e
apresentam-se como uma alternativa privilegiada para viver com mais
intensidade.
A vida é um abrir-se aos demais (esmola), sintonizar-se com o coração
de Deus (oração) e colocar ordem na
própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente,
para que coisas novas aconteçam.
Sintonizados com
o lema da CF –“viu, sentiu
compaixão e cuidou dele” – a
Quaresma é também um tempoprivilegiado para re-educar a olhar: superar o olhar possessivo, interesseiro, frio... e entrar
em sintonia com o modo de olhar de Jesus, ou seja, olhar carregado de
admiração, compaixão, calor humano... Este tempo litúrgico nos move a fixar o
olhar naquilo que vivemos, a contemplar tudo o que compõe nossa existência,
para dar um novo sentido e significado.
Como o bom
samaritano, precisamos re-aprender a olhar, para nos deixar impactar pela
situação dos outros, sobretudo dos mais carentes e excluídos. Nesse sentido, as
três práticas quaresmais – “jejum, oração eesmola” – implicam
também uma conversão do olhar, para captar o mistério da vida que nos envolve e
nos aproximar d’Aquele que é Fonte da Vida.
A liturgia quaresmal nos propõe o jejum; aqui, a novidade não está tanto
em reduzir o que comemos, o que ingerimos de uma maneira quase mecânica. O
jejum também tem a ver com o sentido da visão:
olhar a nós mesmos, fixar a atenção naquilo que nos alimenta, ativar a prática
de nos olharmos com mais compaixão; talvez, afastar de nós aquele olhar que nos
destrói por dentro, que nos causa dano, que bloqueia a expressão de nossa
verdadeira identidade.
O
olhar é o reflexo de nossa
interioridade; ele tem um grande poder porque deixa transparecer o que acontece
e o que sentimos por dentro.
A
outra prática quaresmal proposta é a esmola;
dar o que temos, não o que nos sobra; aqui significa compartilhar um olhar
novo, que eleva o outro, que consegue perceber nele um tesouro escondido, olhar
humanizante e humanizador; tem a ver com o presentear ao outro um olhar de
consolo, de acolhida, de cui-dado, de sorriso...; acostumamos a “ver” as
coisas, as pessoas e, de tanto ver, banalizamos o olhar, perdendo a capacidade
de despertar assombro e encantamento. Vemos e não olhamos. O que está próximo
de nós, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual vai
se estreitando e tudo se torna rotina.
É
salvífico ativar o olhar mais expansivo e contemplativo, um olhar que nos faz
sair de nós mesmos, conduzindo-nos à admiração e ao encantamento diante do dom
maravilhoso da vida, em suas múltiplas expressões. Olhar que desperta a
gratidão e o louvor. Um olhar que deixa transparecer, neste tempo propício, que
a Vida com maiúscula é possível.
E,
finalmente, a prática quaresmal por excelência: a oração.Deixemos retumbar dentro de nós a pergunta: “a partir de onde você olha?” A liturgia nos pede,
neste tempo litúrgico, que sejamos capazes de olhar a partir de Deus; que
fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capazes de olhar-nos com mais
bondade, de olhar os outros com mais carinho, de olhar a criação com mais
admiração. Só assim teremos olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
Quaresma
é um tempo para nos deixar olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão
e aprender a olhar como Deus olha, porque um olhar Seu, bastará para nos fazer “converter e crer no evangelho”.
“Um olhar
contemplativo percebe sinais de evangelho nos acontecimentos mais simples” (Ir. Roger).
Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar
nossas energias e a nos deslocar em outra direção. Nesse sentido, a
vivência quaresmal é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado
nos leva ao centro do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da
Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça
transbordante de Deus.
Nada mais
contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência
estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos,
definitivos, tranqüilizadores...É vida em movimento,
gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e
sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação,
comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que
desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa,
é convocação...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração:- torne o seu
coração vulnerável ao olhar do Pai,
receptivo
a todo apelo que vem d’Ele, deixando-se tocar
pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de Deus.
-
evangelizar
o olhar: aprender a olhar como Jesus, ultrapassando as aparências.
-
como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?
DESERTO, LUGAR DO
DISCERNIMENTO
“O
Espírito conduziu Jesus ao deserto...” (Mt 4,1)
Na
experiência do batismo, Jesus escutou a voz do Pai. Trata-se do principal
momento teofânico de sua vida, juntamente com a transfiguração. Mateus se serve
deles para proclamar que a identidade de Jesus consiste em ser o Filho amado do
Pai. Essa é sua identidade e nela se revela que seu “código genético” consiste
em ser o Filho, o Amado, o Predileto..., sobre quem se visibiliza a
complacência do Pai.
Agora podemos
compreender sua ida ao deserto,
movido pelo Espírito, como uma necessidade imperiosa de “processar”, no
silêncio e na solidão, essa revelação, de alargar espaço, em sua interioridade,
para o deslumbramento e o assombro.
O significado do
deserto não é prioritariamente o penitencial. “Levá-lo-ei
ao deserto e falar-lhe-ei aocoração”, tinha dito Oséias (2,16), convertendo o
deserto em um lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta da Palavra.
Jesus é conduzido ao deserto para acolher a Palavra escutada em seu coração no
mo-mento de seu batismo. Ele precisava de tempo para assentar no mais profundo
de seu ser uma Palavra que o descentrasse para sempre de si mesmo e o situasse
à sombra da ternura incondicional de Alguém maior.
O
evangelista Mateus apresenta a estadia de Jesus no deserto como um tempo de lucidez,
fazendo-nos perceber que a relação filial da qual Ele tinha tomado consciência,
iluminou de tal maneira sua visão, que se tornara impossível confundir a Deus
com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um deus em busca de um
mágico e não de um Filho; um “deus” contaminado das vazias pretensões do pior
da condição humana: ter, brilhar, ostentar poder, exercer domínio...
O que parece claro é que Jesus buscou o deserto
para um tempo de discernimento, em
oração e em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho; Ele teve de
refletir e discernir sobre o modo como assumiria sua missão
em sua vida pública.
Ora,
essamissão comportava, de fato, não só um fim que havia de
realizar (a salvação e a libertação total da humanidade) senão, também, um meio,
ou seja, um caminho e uma maneira de proceder, tendo em vista alcançar aquele fim.
E esse meio ou esse procedimento era, essencialmente, a solidariedade
com todos os pecadores e excluídos da terra, a ponto de morrer com eles e por
eles.
Não podemos
esquecer que o tentador não propõe a Jesus que se afastasse de seu fim,
ou seja, de seu projeto messiânico de salvação (“Se és o Filho de Deus...”), senão que, na
realidade, o que ele faz é oferecer a Jesus alguns meios determinados
para realizar a implantação do Reino do Pai.
Como viver sua
missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando
fielmente a Palavra do Pai? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se
a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua
vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de
solidariedade com os mais excluídos?
Na
cena das tentações, vemos Jesus
reagindo do mesmo modo como fez ao longo de toda sua vida: cen-trado e em
sintonia afetiva com tudo aquilo que Ele vai descobrindo como o querer de seu
Pai: a vida abundante daqueles que
veio buscar e salvar. Ele não veio para preocupar-se de seu próprio pão, mas de
preparar uma mesa na qual todos pudessemse sentar para comer; Ele não veio para
que os anjos o carre-gassem sobre as asas, para angariar fama e “ter um nome”,
mas para dar a conhecer o nome do Pai e carregar sobre seus ombros todos os
perdidos, como um pastor carrega a ovelha extraviada. Não veio para possuir,
dominar ou ser o centro, mas para servir e dar a vida.
O que livra
Jesus de cair nos enganos do tentador é sua ex-centricidade, sua referência ao
Pai e à sua Palavra, e, a partir desse Centro, receberá o impulso para
abandonar o deserto e se deixar conduzir pela corrente de Vida, alimentada pelo
Espírito. A partir desse momento, vê-lo-emos caminhando pela Gali-léia,
entrando em relação com o mundo dos pobres e excluídos, anunciando o Reino,
criando uma nova comunidade de vida, buscando colaboradores, aproximando-se das
pessoas, entrando nas casas, acolhen-do, curando, ensinando, abrindo um
horizonte de sentido para a vida das pessoas...
A
passagem evangélica das tentaçõestambém
nos inspira a encontrar com o mesmo Deus a quem Jesus conheceu no deserto: um
Deus que não exige de nós proezas nem gestos espetaculares, mas somente
alimentar nossa confiança n’Ele e nosso agradecimento; um Deus que nos dirige
sua Palavra, não para nos impor obrigações ou para apontar nossas fragilidades,
mas para nos alimentar e nos fazer crescer; um De-us que não é encontrado nos
lugares carregados de prepotência, de poder, de vaidade e consumismo, mas nos
lugares do despojamento e da simplicidade de vida, nos lugares dos
“descartados” e excluídos.
Muitas vezes
pensamos que Deus é um “estraga-prazeres”, ou um Deus triste que não quer que
vivamos prazerosamente. E, então, temos a sensação que as tentações são essas coisas fascinantes que nos sedu-zem, mas que
temos de renunciá-las em nome de uma suposta “perfeição”. Porém, Deus não é
Aquele que complica nossa vida com leis, sacrifícios, renúncias... Ele quer que
vivamos e, de maneira intensa.
Para cruzar os
desertos da vida é preciso ativar uma atitude de esvaziamento de tudo aquilo
que é “peso morto” para chegar ao mais profundo e verdadeiro de nosso ser. O
deserto nos revela de onde viemos e para onde vamos; ele nos remete inteiramente
ao Doador da vida e desperta outros recursos vitais, aninhados em nosso
interior.
Tudo o mais é
pouco para a sede do coração. “Só Deus basta”, nos sussurra o deserto.
Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de
nós, estamos expostos à tentação. Faz
parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito permanente que pode
travarnossa existência por dentro.
Por um lado, sentimos o apelo e o impulso para o
bem, para a liberdade, para o compromisso e a fraterni-dade. Mas por outro,
sentimos também a sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os
ins-tintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores,
oprimidos e libertados.
As tentações sempre estão diante de nós,
como pedras
que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos
critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às
promessas de um ídolo com pés de barro.
São dinamismos que bloqueiam o fluxo da vida, impedindo-a de se expandir
e de se colocar a serviço de outras vidas.
Ser tentado é
próprio do humano, mas o que é divino pode também ser encontrado em nosso
interior.
Quem é conduzido
pelo Espírito, é capaz de acessar à própria interioridade e não se deixa
enredar pelos estímulos externos nem pelos impulsos egóicos.
Diante das tentações do poder, do ter e do prestígio, o(a) seguidor(a) de Jesus
responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade...
O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo. E a Campanha da
Fraternidade nos motiva a fazer da vida
um grande dom e um profundo compromisso.
Só quem se deixa conduzir pelo
Espírito, como Jesus, consegue romper com tudo aquilo que atrofia a vida; só
assim consegue fazer o salto libertador
Trata-se de ser
dócil para deixar-se conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes
não entende e não sabe. É Ele que ativa o que há de melhor em si mesmo,
expandindo sua vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço,
esvaziamento do ego...
Na realidade, só existe uma “grande tentação” para os cristãos: a
tentação radical da infidelidade a
Cristo e a seu Reino.É a tentação de
traçar para si mesmo um caminho, isto é, de projetar
uma vida para si, dando uma direção diferente daquela que lhe deu o próprio
Deus. Esta é a maneira de trair o melhor
de si mesmo, de renunciar ao que há de melhor
em si mesmo. Tentação essa que significa o fracasso da própria vida.
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração:Diante de “Jesus tentado”, recorde experiências
pessoais de
tentação: quais são aquelas que mais lhe afetam e lhe seduzem? Como você
procede para não se deixar conduzir e nem se determinar por elas?
- Recorde dimensões da vida que precisam ser
ampliadas a partir da experiência do deserto.
VIVER RELAÇÕES COMUNITÁRIAS SADIAS E RECONSTRUTORAS
“Onde
dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles” (Mt
18,20)
Tudo na
vida gira em torno das relações: com Deus, consigo mesmo, com os
outros, com a natureza. Isso é especialmente verdadeiro numa comunidade cristã.
Famílias saudáveis, grupos saudáveis, igrejas saudáveis, vidas saudáveis,
ambientes saudáveis... falam de relações saudáveis.
No capítulo 18,
Mateus recolhe uma série de afirmações de Jesus sobre a comunidade dos seus
seguidores. É a primeira vez que se emprega o termo “irmão” para designar os
membros da comunidade cristã. É preciso notar que o texto de hoje é continuação
da parábola da ovelha perdida, que termina com a frase: “Assim vosso Pai que
está nos céus não deseja que se perca nenhum destes pequeninos”.
No
evangelho dé muito relevante a preocupação pela vida interna da comunidade; o
texto nos adverte que não se pode partir de uma comunidade de perfeitos, mas de
uma comunidade de irmãos, que reconhecem suas fragilidades e precisam do apoio
mútuo para superar seus limites e erros. As rupturas nas relações podem surgir
em qualquer momento, mas o importante é estar preparado para superá-las.
Jesus
Cristo não só revelou a verdadeira identidade de Deus, cuja essência é relacional(cerne
da doutrina cristã da Trindade), mas mostrou que o caminho para a transformação
pessoal consiste, também, numa correta e justa vivência na relação com
os outros.
De fato,
a pessoa humana não se pode realizar sem os outros. Realiza-se quando, livre e
voluntariamente, conhece e é conhecida, ama e é amada, compreende e é compreendida.
Precisamente, a reciprocidade das relações é a que permite integrar a igualdade
e a diferença, a identidade pessoal e a identidade do outro, buscando chegar à
comunhão e à unidade.
Humanamente
falando, nem sempre nós nos damos conta, mas o foco em torno do qual gira toda
a existência humana está na capacidade de nos relacionar e de nos comunicar.
As relações humanas são o centro de tudo. A essência última de
todas as ansiedades humanas manifesta-se como um problema de relações: com os
pais, com os filhos, com os companheiros de trabalho, com os amigos, com os
vizinhos, com os irmãos de comunidade, com as diversas culturas, raças, grupos
étnicos, etc...
Relacionar-se é a grande e única
finalidade da vida do ser humano: encontrar-se, viver em sociedade, colaborar,
construir amizades, amores, conhecer gente...; tudo está condicionado pela
potencialidade e pela capacidade de relacionar-se.
“No
princípio era a relação”, afirmava o filósofo Martin Buber. De
fato, a pessoa existe graças à relação e para a relação; cresce na relação e em
vista da relação; amadurece e se humaniza na relação.
Mas é na relação que emergem
nossas riquezas e nossas pobrezas humanas. Todos temos limites, bloqueios que
fragilizam os laços comunitários. É importante aceitar que existem tais
limites, aprender a reconhecê-los, ajudando mutuamente a superá-los e acolhendo
aquilo que nos convida a ser mais criativos, audazes e valentes.
A gestão das relações
interpessoais exige equilíbrio e sabedoria. A partir das limitações e
fragilidades também podemos nos encontrar com os outros. Precisamos de
sabedoria para aceitar a realidade, acolhê-la e cuidá-la, para ir transformando
por dentro. Não podemos nos conformar com a mediocridade da comunidade. Toda a
comunidade é impelida a um “mais” que brota do modo de proceder e viver de
Jesus.
O sentido da comunidade cristã,
portanto, é de ajuda mútua. “Ajudar” pede um
coração magnânimo, grandeza de sonhos, de ânimo e de desejo; mas, ao mesmo
tempo ela nos convida à humildade, ou seja, abrir-nos às necessidades do outro,
descer ao nível do outro, renunciando nossos próprios critérios, modos fechados
de viver...
“Ajudar” não vai na linha do impor, senão do propor.
Trata-se, isso sim, de propor com qualidade, com firmeza, com proximidade, com
compromisso pessoal. Isso requer presença gratuita, desinteressada, centrada no
bem da outra pessoa, sem criar dependências, mas fazendo o outro crescer em
liberdade.
A comunidade deve ser sacramento (sinal) de
salvação para todos. Atualmente não temos consciência dessa responsabilidade.
Passamos friamente pelos outros. Seguimos fechados em nosso egoísmo, inclusive
na vivência religiosa. A falha mais letal de nosso tempo é a indiferença. Martin
Descalzo a chamou “a perfeição do egoísmo”. Outro a define como
“homicídio virtual”. Seguramente é hoje o pecado mais difundido em nossas
comunidades cristãs.
O papa Francisco continuamente
nos apela a passar da “cultura da indiferença” à “cultura do encontro”; sua
intenção é desmascarar a indiferença que prevalece em todos nós, a
superficialidade das relações, e buscar um encontro verdadeiro e profundo com o
outro.
Nessa perspectiva, a comunidade é
o lugar da “correção fraterna”; e o critério para a correção não é
a lei mas a presença de Jesus que está no meio da comunidade. Quando a correção
é feita a partir da lei, assumimos a posição de juízes, rompemos a comunhão,
criamos categorias de pessoas (perfeitas e imperfeitas) e caímos no legalismo e
moralismo.
Todos devem “corrigir-se”
mutuamente, tendo os olhos fixos em Jesus; no seguimento de Jesus ninguém chega
à “perfeição” a ponto de poder corrigir os outros. Por isso, a correção
fraterna é um estilo de vida que não se limita aos erros e fracassos; ela
implica em ativar mutuamente os dons e capacidades que ainda não puderam se expressar.
A presença de Jesus no meio da comunidade é sempre horizonte inspirador para
que todos cresçam na identificação com Ele. Nesse processo de crescimentos os
ritmos são diferentes para cada pessoa; não se trata de nivelar a todos mas de
respeitar os processos, as circunstâncias, as condições de cada seguidor(a) de
Jesus. A correção significa, então, estima e confiança no outro, pois ele é
muito maior que suas falhas.
Educados pela misericórdia de
Deus, todos somos chamados a exercer o ofício da “correção fraterna”, para que
a comunidade possa se revestir sempre mais do modo de ser e proceder de Jesus.
A correção fraterna, pois, não é
tarefa fácil; e isto por duas razões: em primeiro lugar, aquele que corrige
pode humilhar àquele que é corrigido, querendo realçar sua superioridade moral.
Aqui temos que recordar as palavras de Jesus: como pretendes tirar o cisco do
olho do teu irmão se tens uma trave no teu?
Em segundo lugar, aquele que é
corrigido pode rejeitar a correção por falta de humildade. Diante dessas duas
razões necessita-se de um grau de maturidade humana que não é fácil de
alcançar.
No entanto, o importante não é a norma concreta,
mas o espírito que a inspirou é que deve inspirar-nos na maneira de nos
conduzir diante das rupturas das relações, visando sempre a construção da
comunidade.
Por isso, onde reina a
competência desleal, nós anunciamos a lealdade; onde reina o empenho em
colocar-se acima dos outros, nós anunciamos a igualdade; onde reina o afã da
vaidade e da aparência, nós anunciamos o serviço; onde reina a dificuldade nas
relações mútuas, nós queremos ser presenças de acolhida; onde custa solicitar
favores, nós queremos estar disponíveis àqueles que clamam por ajuda; onde
reina a exploração, nós anunciamos a solidariedade e a luta contra a injustiça;
onde reina a indolência, a inibição, nós anunciamos e vivemos iniciativas em
favor da vida...
IRMÃS BENDITINAS DA PROVIDENCIA-
GAMA –BRASIL-2020