sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020


Retiro de fevereiro 2020






INÍCIO DA QUARESMA: cinzas que dão vida

“E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (Mt 6,4)

Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2020, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de viver, onde a verdadeira liberdade terá a chance de se expressar.
Quaresma pode ser escola de vida para o restante do ano; é tempo favorável para “ordenar a própria vida”na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
Nem sempre sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”... O dinamismo do Seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração. O seguimento proporciona vigor inesgotável, a vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão....
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de viver como viveu Jesus de Nazaré
Distanciar-se da vida superficial-consumista e eleger a vida plena, profunda, comprometida: aqui está o sentido do “percurso quaresmal”

Em sintonia com toda as comunidades cristãs somos chamados a viver o “tempo quaresmal” sempre de ma-neira nova e inspiradora. O centro de nossa vida é Jesus Cristo, sua pessoa, sua mensagem, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu seguimento é sempre rico e surpreendente. Muitas vezes, corremos o risco de viver o tempo litúrgico da Quaresma como uma celebração rotineira, algo já conhecido.
Contemplando Jesus Cristo, descobrimos também quem somos nós. Ele nos interpela: que queremos fazer de nossa vida? Como queremos viver? Para quê e para quem vivemos?...
Nesse sentido, através da Campanha da Fraternidade, a Igreja no Brasil nos motiva a viver a Quaresma como um tempo privilegiado para dar um novo sentido à nossa vida. Através do tema “Vida, dom e Missão” e do lema “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”, somos movidos a desatar todas as ricas possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.
A imagem de Jesus, presente junto às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa própria inte-rioridade e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus limites estreitos e cons-tituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.
Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida. A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de re-construção de nós mesmos (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais partilha, mais solidariedade...).

O Evangelho da 4ª. feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de viver e de proceder de Jesus.
São três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã e apresentam-se como uma alternativa privilegiada para viver com mais intensidade.
A vida é um abrir-se aos demais (esmola), sintonizar-se com o coração de Deus (oração) e colocar ordem na própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam.
Sintonizados com o lema da CF –“viu, sentiu compaixão e cuidou dele”a Quaresma é também um tempoprivilegiado para re-educar a olhar: superar o olhar possessivo, interesseiro, frio... e entrar em sintonia com o modo de olhar de Jesus, ou seja, olhar carregado de admiração, compaixão, calor humano... Este tempo litúrgico nos move a fixar o olhar naquilo que vivemos, a contemplar tudo o que compõe nossa existência, para dar um novo sentido e significado.
Como o bom samaritano, precisamos re-aprender a olhar, para nos deixar impactar pela situação dos outros, sobretudo dos mais carentes e excluídos. Nesse sentido, as três práticas quaresmais – “jejum, oração eesmola” – implicam também uma conversão do olhar, para captar o mistério da vida que nos envolve e nos aproximar d’Aquele que é Fonte da Vida.


A liturgia quaresmal nos propõe o jejum; aqui, a novidade não está tanto em reduzir o que comemos, o que ingerimos de uma maneira quase mecânica. O jejum também tem a ver com o sentido da visão: olhar a nós mesmos, fixar a atenção naquilo que nos alimenta, ativar a prática de nos olharmos com mais compaixão; talvez, afastar de nós aquele olhar que nos destrói por dentro, que nos causa dano, que bloqueia a expressão de nossa verdadeira identidade.
O olhar é o reflexo de nossa interioridade; ele tem um grande poder porque deixa transparecer o que acontece e o que sentimos por dentro.

A outra prática quaresmal proposta é a esmola; dar o que temos, não o que nos sobra; aqui significa compartilhar um olhar novo, que eleva o outro, que consegue perceber nele um tesouro escondido, olhar humanizante e humanizador; tem a ver com o presentear ao outro um olhar de consolo, de acolhida, de cui-dado, de sorriso...; acostumamos a “ver” as coisas, as pessoas e, de tanto ver, banalizamos o olhar, perdendo a capacidade de despertar assombro e encantamento. Vemos e não olhamos. O que está próximo de nós, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual vai se estreitando e tudo se torna rotina.
É salvífico ativar o olhar mais expansivo e contemplativo, um olhar que nos faz sair de nós mesmos, conduzindo-nos à admiração e ao encantamento diante do dom maravilhoso da vida, em suas múltiplas expressões. Olhar que desperta a gratidão e o louvor. Um olhar que deixa transparecer, neste tempo propício, que a Vida com maiúscula é possível.

E, finalmente, a prática quaresmal por excelência: a oração.Deixemos retumbar dentro de nós a pergunta: “a partir de onde você olha?” A liturgia nos pede, neste tempo litúrgico, que sejamos capazes de olhar a partir de Deus; que fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capazes de olhar-nos com mais bondade, de olhar os outros com mais carinho, de olhar a criação com mais admiração. Só assim teremos olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
Quaresma é um tempo para nos deixar olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão e aprender a olhar como Deus olha, porque um olhar Seu, bastará para nos fazer “converter e crer no evangelho”.
“Um olhar contemplativo percebe sinais de evangelho nos acontecimentos mais simples” (Ir. Roger).

Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e a nos deslocar em outra direção. Nesse sentido, a vivência quaresmal é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao centro do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranqüilizadores...É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...

Texto bíblico:  Mt 6,1-6.16-18

Na oração:- torne o seu coração vulnerável ao olhar do Pai,
receptivo a todo apelo que vem d’Ele, deixando-se tocar pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de Deus.
- evangelizar o olhar: aprender a olhar como Jesus, ultrapassando as aparências.
- como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?



DESERTO, LUGAR DO DISCERNIMENTO

“O Espírito conduziu Jesus ao deserto...” (Mt 4,1)

Na experiência do batismo, Jesus escutou a voz do Pai. Trata-se do principal momento teofânico de sua vida, juntamente com a transfiguração. Mateus se serve deles para proclamar que a identidade de Jesus consiste em ser o Filho amado do Pai. Essa é sua identidade e nela se revela que seu “código genético” consiste em ser o Filho, o Amado, o Predileto..., sobre quem se visibiliza a complacência do Pai.
Agora podemos compreender sua ida ao deserto, movido pelo Espírito, como uma necessidade imperiosa de “processar”, no silêncio e na solidão, essa revelação, de alargar espaço, em sua interioridade, para o deslumbramento e o assombro.
O significado do deserto não é prioritariamente o penitencial. “Levá-lo-ei ao deserto e falar-lhe-ei aocoração”, tinha dito Oséias (2,16), convertendo o deserto em um lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta da Palavra. Jesus é conduzido ao deserto para acolher a Palavra escutada em seu coração no mo-mento de seu batismo. Ele precisava de tempo para assentar no mais profundo de seu ser uma Palavra que o descentrasse para sempre de si mesmo e o situasse à sombra da ternura incondicional de Alguém maior.

O evangelista Mateus apresenta a estadia de Jesus no deserto como um tempo de lucidez, fazendo-nos perceber que a relação filial da qual Ele tinha tomado consciência, iluminou de tal maneira sua visão, que se tornara impossível confundir a Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um deus em busca de um mágico e não de um Filho; um “deus” contaminado das vazias pretensões do pior da condição humana: ter, brilhar, ostentar poder, exercer domínio...
O que parece claro é que Jesus buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração e em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho; Ele teve de refletir e discernir sobre o modo como assumiria sua missão em sua vida pública.
Ora, essamissão comportava, de fato, não só um fim que havia de realizar (a salvação e a libertação total da humanidade) senão, também, um meio, ou seja, um caminho e uma maneira de proceder, tendo em vista alcançar aquele fim. E esse meio ou esse procedimento era, essencialmente, a solidariedade com todos os pecadores e excluídos da terra, a ponto de morrer com eles e por eles.
Não podemos esquecer que o tentador não propõe a Jesus que se afastasse de seu fim, ou seja, de seu projeto messiânico de salvação (“Se és o Filho de Deus...”), senão que, na realidade, o que ele faz é oferecer a Jesus alguns meios determinados para realizar a implantação do Reino do Pai.
Como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente a Palavra do Pai? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade com os mais excluídos?

Na cena das tentações, vemos Jesus reagindo do mesmo modo como fez ao longo de toda sua vida: cen-trado e em sintonia afetiva com tudo aquilo que Ele vai descobrindo como o querer de seu Pai: a vida abundante daqueles que veio buscar e salvar. Ele não veio para preocupar-se de seu próprio pão, mas de preparar uma mesa na qual todos pudessemse sentar para comer; Ele não veio para que os anjos o carre-gassem sobre as asas, para angariar fama e “ter um nome”, mas para dar a conhecer o nome do Pai e carregar sobre seus ombros todos os perdidos, como um pastor carrega a ovelha extraviada. Não veio para possuir, dominar ou ser o centro, mas para servir e dar a vida.
O que livra Jesus de cair nos enganos do tentador é sua ex-centricidade, sua referência ao Pai e à sua Palavra, e, a partir desse Centro, receberá o impulso para abandonar o deserto e se deixar conduzir pela corrente de Vida, alimentada pelo Espírito. A partir desse momento, vê-lo-emos caminhando pela Gali-léia, entrando em relação com o mundo dos pobres e excluídos, anunciando o Reino, criando uma nova comunidade de vida, buscando colaboradores, aproximando-se das pessoas, entrando nas casas, acolhen-do, curando, ensinando, abrindo um horizonte de sentido para a vida das pessoas...

A passagem evangélica das tentaçõestambém nos inspira a encontrar com o mesmo Deus a quem Jesus conheceu no deserto: um Deus que não exige de nós proezas nem gestos espetaculares, mas somente alimentar nossa confiança n’Ele e nosso agradecimento; um Deus que nos dirige sua Palavra, não para nos impor obrigações ou para apontar nossas fragilidades, mas para nos alimentar e nos fazer crescer; um De-us que não é encontrado nos lugares carregados de prepotência, de poder, de vaidade e consumismo, mas nos lugares do despojamento e da simplicidade de vida, nos lugares dos “descartados” e excluídos.
Muitas vezes pensamos que Deus é um “estraga-prazeres”, ou um Deus triste que não quer que vivamos prazerosamente. E, então, temos a sensação que as tentações são essas coisas fascinantes que nos sedu-zem, mas que temos de renunciá-las em nome de uma suposta “perfeição”. Porém, Deus não é Aquele que complica nossa vida com leis, sacrifícios, renúncias... Ele quer que vivamos e, de maneira intensa.
Para cruzar os desertos da vida é preciso ativar uma atitude de esvaziamento de tudo aquilo que é “peso morto” para chegar ao mais profundo e verdadeiro de nosso ser. O deserto nos revela de onde viemos e para onde vamos; ele nos remete inteiramente ao Doador da vida e desperta outros recursos vitais, aninhados em nosso interior.
Tudo o mais é pouco para a sede do coração. “Só Deus basta”, nos sussurra o deserto.

Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito permanente que pode travarnossa existência por dentro.
Por um lado, sentimos o apelo e o impulso para o bem, para a liberdade, para o compromisso e a fraterni-dade. Mas por outro, sentimos também a sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os ins-tintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.
As tentações sempre estão diante de nós, como pedras que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro.  São dinamismos que bloqueiam o fluxo da vida, impedindo-a de se expandir e de se colocar a serviço de outras vidas.
Ser tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode também ser encontrado em nosso interior.
Quem é conduzido pelo Espírito, é capaz de acessar à própria interioridade e não se deixa enredar pelos estímulos externos nem pelos impulsos egóicos.

Diante das tentações do poder, do ter e do prestígio, o(a) seguidor(a) de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo. E a Campanha da Fraternidade nos motiva a fazer da vida um grande dom e um profundo compromisso.
Só quem se deixa conduzir pelo Espírito, como Jesus, consegue romper com tudo aquilo que atrofia a vida; só assim consegue fazer o salto libertador
Trata-se de ser dócil para deixar-se conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entende e não sabe. É Ele que ativa o que há de melhor em si mesmo, expandindo sua vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Na realidade, só existe uma “grande tentação” para os cristãos: a tentação radical da infidelidade a Cristo e a seu Reino.É a tentação de traçar para si mesmo um caminho, isto é, de projetar uma vida para si, dando uma direção diferente daquela que lhe deu o próprio Deus. Esta é a maneira de trair o melhor de si mesmo, de renunciar ao que há de melhor em si mesmo. Tentação essa que significa o fracasso da própria vida.

Texto bíblico: Mt 4,1-11

Na oração:Diante de “Jesus tentado”, recorde experiências
pessoais de tentação: quais são aquelas que mais lhe afetam e lhe seduzem? Como você procede para não se deixar conduzir e nem se determinar por elas?
- Recorde dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da experiência do deserto. 


VIVER RELAÇÕES COMUNITÁRIAS SADIAS E RECONSTRUTORAS


“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles” (Mt 18,20)
Tudo na vida gira em torno das relações: com Deus, consigo mesmo, com os outros, com a natureza. Isso é especialmente verdadeiro numa comunidade cristã. Famílias saudáveis, grupos saudáveis, igrejas saudáveis, vidas saudáveis, ambientes saudáveis... falam de relações saudáveis.
No capítulo 18, Mateus recolhe uma série de afirmações de Jesus sobre a comunidade dos seus seguidores. É a primeira vez que se emprega o termo “irmão” para designar os membros da comunidade cristã. É preciso notar que o texto de hoje é continuação da parábola da ovelha perdida, que termina com a frase: “Assim vosso Pai que está nos céus não deseja que se perca nenhum destes pequeninos”.
No evangelho dé muito relevante a preocupação pela vida interna da comunidade; o texto nos adverte que não se pode partir de uma comunidade de perfeitos, mas de uma comunidade de irmãos, que reconhecem suas fragilidades e precisam do apoio mútuo para superar seus limites e erros. As rupturas nas relações podem surgir em qualquer momento, mas o importante é estar preparado para superá-las.
Jesus Cristo não só revelou a verdadeira identidade de Deus, cuja essência é relacional(cerne da doutrina cristã da Trindade), mas mostrou que o caminho para a transformação pessoal consiste, também, numa correta e justa vivência na relação com os outros.
De fato, a pessoa humana não se pode realizar sem os outros. Realiza-se quando, livre e voluntariamente, conhece e é conhecida, ama e é amada, compreende e é compreendida. Precisamente, a reciprocidade das relações é a que permite integrar a igualdade e a diferença, a identidade pessoal e a identidade do outro, buscando chegar à comunhão e à unidade.
Humanamente falando, nem sempre nós nos damos conta, mas o foco em torno do qual gira toda a existência humana está na capacidade de nos relacionar e de nos comunicar. As relações humanas são o centro de tudo. A essência última de todas as ansiedades humanas manifesta-se como um problema de relações: com os pais, com os filhos, com os companheiros de trabalho, com os amigos, com os vizinhos, com os irmãos de comunidade, com as diversas culturas, raças, grupos étnicos, etc...
Relacionar-se é a grande e única finalidade da vida do ser humano: encontrar-se, viver em sociedade, colaborar, construir amizades, amores, conhecer gente...; tudo está condicionado pela potencialidade e pela capacidade de relacionar-se.
“No princípio era a relação”, afirmava o filósofo Martin Buber. De fato, a pessoa existe graças à relação e para a relação; cresce na relação e em vista da relação; amadurece e se humaniza na relação.
Mas é na relação que emergem nossas riquezas e nossas pobrezas humanas. Todos temos limites, bloqueios que fragilizam os laços comunitários. É importante aceitar que existem tais limites, aprender a reconhecê-los, ajudando mutuamente a superá-los e acolhendo aquilo que nos convida a ser mais criativos, audazes e valentes.
A gestão das relações interpessoais exige equilíbrio e sabedoria. A partir das limitações e fragilidades também podemos nos encontrar com os outros. Precisamos de sabedoria para aceitar a realidade, acolhê-la e cuidá-la, para ir transformando por dentro. Não podemos nos conformar com a mediocridade da comunidade. Toda a comunidade é impelida a um “mais” que brota do modo de proceder e viver de Jesus.
O sentido da comunidade cristã, portanto, é de ajuda mútua. “Ajudar” pede um coração magnânimo, grandeza de sonhos, de ânimo e de desejo; mas, ao mesmo tempo ela nos convida à humildade, ou seja, abrir-nos às necessidades do outro, descer ao nível do outro, renunciando nossos próprios critérios, modos fechados de viver...
“Ajudar” não vai na linha do impor, senão do propor. Trata-se, isso sim, de propor com qualidade, com firmeza, com proximidade, com compromisso pessoal. Isso requer presença gratuita, desinteressada, centrada no bem da outra pessoa, sem criar dependências, mas fazendo o outro crescer em liberdade.
A comunidade deve ser sacramento (sinal) de salvação para todos. Atualmente não temos consciência dessa responsabilidade. Passamos friamente pelos outros. Seguimos fechados em nosso egoísmo, inclusive na vivência religiosa. A falha mais letal de nosso tempo é a indiferençaMartin Descalzo a chamou “a perfeição do egoísmo”. Outro a define como “homicídio virtual”. Seguramente é hoje o pecado mais difundido em nossas comunidades cristãs.
O papa Francisco continuamente nos apela a passar da “cultura da indiferença” à “cultura do encontro”; sua intenção é desmascarar a indiferença que prevalece em todos nós, a superficialidade das relações, e buscar um encontro verdadeiro e profundo com o outro.
Nessa perspectiva, a comunidade é o lugar da “correção fraterna”; e o critério para a correção não é a lei mas a presença de Jesus que está no meio da comunidade. Quando a correção é feita a partir da lei, assumimos a posição de juízes, rompemos a comunhão, criamos categorias de pessoas (perfeitas e imperfeitas) e caímos no legalismo e moralismo.
Todos devem “corrigir-se” mutuamente, tendo os olhos fixos em Jesus; no seguimento de Jesus ninguém chega à “perfeição” a ponto de poder corrigir os outros. Por isso, a correção fraterna é um estilo de vida que não se limita aos erros e fracassos; ela implica em ativar mutuamente os dons e capacidades que ainda não puderam se expressar. A presença de Jesus no meio da comunidade é sempre horizonte inspirador para que todos cresçam na identificação com Ele. Nesse processo de crescimentos os ritmos são diferentes para cada pessoa; não se trata de nivelar a todos mas de respeitar os processos, as circunstâncias, as condições de cada seguidor(a) de Jesus. A correção significa, então, estima e confiança no outro, pois ele é muito maior que suas falhas.
Educados pela misericórdia de Deus, todos somos chamados a exercer o ofício da “correção fraterna”, para que a comunidade possa se revestir sempre mais do modo de ser e proceder de Jesus.
A correção fraterna, pois, não é tarefa fácil; e isto por duas razões: em primeiro lugar, aquele que corrige pode humilhar àquele que é corrigido, querendo realçar sua superioridade moral. Aqui temos que recordar as palavras de Jesus: como pretendes tirar o cisco do olho do teu irmão se tens uma trave no teu?
Em segundo lugar, aquele que é corrigido pode rejeitar a correção por falta de humildade. Diante dessas duas razões necessita-se de um grau de maturidade humana que não é fácil de alcançar.
No entanto, o importante não é a norma concreta, mas o espírito que a inspirou é que deve inspirar-nos na maneira de nos conduzir diante das rupturas das relações, visando sempre a construção da comunidade.
Por isso, onde reina a competência desleal, nós anunciamos a lealdade; onde reina o empenho em colocar-se acima dos outros, nós anunciamos a igualdade; onde reina o afã da vaidade e da aparência, nós anunciamos o serviço; onde reina a dificuldade nas relações mútuas, nós queremos ser presenças de acolhida; onde custa solicitar favores, nós queremos estar disponíveis àqueles que clamam por ajuda; onde reina a exploração, nós anunciamos a solidariedade e a luta contra a injustiça; onde reina a indolência, a inibição, nós anunciamos e vivemos iniciativas em favor da vida...
IRMÃS BENDITINAS DA PROVIDENCIA- GAMA –BRASIL-2020