domingo, 8 de dezembro de 2019


CARTA APOSTÓLICA
ADMIRABILE SIGNUM
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE O SIGNIFICADO E VALOR DO PRESÉPIO
1. O SINAL ADMIRÁVEL do Presépio, muito amado pelo povo cristão, não cessa de suscitar maravilha e enlevo. Representar o acontecimento da natividade de Jesus equivale a anunciar, com simplicidade e alegria, o mistério da encarnação do Filho de Deus. De facto, o Presépio é como um Evangelho vivo que transvaza das páginas da Sagrada Escritura. Ao mesmo tempo que contemplamos a representação do Natal, somos convidados a colocar-nos espiritualmente a caminho, atraídos pela humildade d’Aquele que Se fez homem a fim de Se encontrar com todo o homem, e a descobrir que nos ama tanto, que Se uniu a nós para podermos, também nós, unir-nos a Ele.
Com esta Carta, quero apoiar a tradição bonita das nossas famílias prepararem o Presépio, nos dias que antecedem o Natal, e também o costume de o armarem nos lugares de trabalho, nas escolas, nos hospitais, nos estabelecimentos prisionais, nas praças… Trata-se verdadeiramente dum exercício de imaginação criativa, que recorre aos mais variados materiais para produzir, em miniatura, obras-primas de beleza. Aprende-se em criança, quando o pai e a mãe, juntamente com os avós, transmitem este gracioso costume, que encerra uma rica espiritualidade popular. Almejo que esta prática nunca desapareça; mais, espero que a mesma, onde porventura tenha caído em desuso, se possa redescobrir e revitalizar.
2. A origem do Presépio fica-se a dever, antes de mais nada, a alguns pormenores do nascimento de Jesus em Belém, referidos no Evangelho. O evangelista Lucas limita-se a dizer que, tendo-se completado os dias de Maria dar à luz, «teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria» (2, 7). Jesus é colocado numa manjedoura, que, em latim, se diz praesepium, donde vem a nossa palavra presépio.
Ao entrar neste mundo, o Filho de Deus encontra lugar onde os animais vão comer. A palha torna-se a primeira enxerga para Aquele que Se há de revelar como «o pão vivo, o que desceu do céu» (Jo6, 51). Uma simbologia, que já Santo Agostinho, a par doutros Padres da Igreja, tinha entrevisto quando escreveu: «Deitado numa manjedoura, torna-Se nosso alimento».[1]Na realidade, o Presépio inclui vários mistérios da vida de Jesus, fazendo-os aparecer familiares à nossa vida diária.
Passemos agora à origem do Presépio, tal como nós o entendemos. A mente leva-nos a Gréccio, na Valada de Rieti; aqui se deteve São Francisco, provavelmente quando vinha de Roma onde recebera, do Papa Honório III, a aprovação da sua Regra em 29 de novembro de 1223. Aquelas grutas, depois da sua viagem à Terra Santa, faziam-lhe lembrar de modo particular a paisagem de Belém. E é possível que, em Roma, o «Poverello» de Assis tenha ficado encantado com os mosaicos, na Basílica de Santa Maria Maior, que representam a natividade de Jesus e se encontram perto do lugar onde, segundo uma antiga tradição, se conservam precisamente as tábuas da manjedoura.
As Fontes Franciscanas narram, de forma detalhada, o que aconteceu em Gréccio. Quinze dias antes do Natal, Francisco chamou João, um homem daquela terra, para lhe pedir que o ajudasse a concretizar um desejo: «Quero representar o Menino nascido em Belém, para de algum modo ver com os olhos do corpo os incómodos que Ele padeceu pela falta das coisas necessárias a um recém-nascido, tendo sido reclinado na palha duma manjedoura, entre o boi e o burro».[2]Mal acabara de o ouvir, o fiel amigo foi preparar, no lugar designado, tudo o que era necessário segundo o desejo do Santo. No dia 25 de dezembro, chegaram a Gréccio muitos frades, vindos de vários lados, e também homens e mulheres das casas da região, trazendo flores e tochas para iluminar aquela noite santa. Francisco, ao chegar, encontrou a manjedoura com palha, o boi e o burro. À vista da representação do Natal, as pessoas lá reunidas manifestaram uma alegria indescritível, como nunca tinham sentido antes. Depois o sacerdote celebrou solenemente a Eucaristia sobre a manjedoura, mostrando também deste modo a ligação que existe entre a Encarnação do Filho de Deus e a Eucaristia. Em Gréccio, naquela ocasião, não havia figuras; o Presépio foi formado e vivido pelos que estavam presentes.[3]
Assim nasce a nossa tradição: todos à volta da gruta e repletos de alegria, sem qualquer distância entre o acontecimento que se realiza e as pessoas que participam no mistério.
O primeiro biógrafo de São Francisco, Tomás de Celano, lembra que naquela noite, à simples e comovente representação se veio juntar o dom duma visão maravilhosa: um dos presentes viu que jazia na manjedoura o próprio Menino Jesus. Daquele Presépio do Natal de 1223, «todos voltaram para suas casas cheios de inefável alegria»[4].
3. Com a simplicidade daquele sinal, São Francisco realizou uma grande obra de evangelização. O seu ensinamento penetrou no coração dos cristãos, permanecendo até aos nossos dias como uma forma genuína de repropor, com simplicidade, a beleza da nossa fé. Aliás, o próprio lugar onde se realizou o primeiro Presépio sugere e suscita estes sentimentos. Gréccio torna-se um refúgio para a alma que se esconde na rocha, deixando-se envolver pelo silêncio.
Por que motivo suscita o Presépio tanto enlevo e nos comove? Antes de mais nada, porque manifesta a ternura de Deus. Ele, o Criador do universo, abaixa-Se até à nossa pequenez. O dom da vida, sempre misterioso para nós, fascina-nos ainda mais ao vermos que Aquele que nasceu de Maria é a fonte e o sustento de toda a vida. Em Jesus, o Pai deu-nos um irmão, que vem procurar-nos quando estamos desorientados e perdemos o rumo, e um amigo fiel, que está sempre ao nosso lado; deu-nos o seu Filho, que nos perdoa e levanta do pecado.
Armar o Presépio em nossas casas ajuda-nos a reviver a história sucedida em Belém. Naturalmente os Evangelhos continuam a ser a fonte, que nos permite conhecer e meditar aquele Acontecimento; mas, a sua representação no Presépio ajuda a imaginar as várias cenas, estimula os afetos, convida a sentir-nos envolvidos na história da salvação, contemporâneos daquele evento que se torna vivo e atual nos mais variados contextos históricos e culturais.
De modo particular, desde a sua origem franciscana, o Presépio é um convite a «sentir», a «tocar» a pobreza que escolheu, para Si mesmo, o Filho de Deus na sua encarnação, tornando-se assim, implicitamente, um apelo para O seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento, que parte da manjedoura de Belém e leva até à Cruz, e um apelo ainda a encontrá-Lo e servi-Lo, com misericórdia, nos irmãos e irmãs mais necessitados (cf. Mt 25, 31-46).
4. Gostava agora de repassar os vários sinais do Presépio para apreendermos o significado que encerram. Em primeiro lugar, representamos o céu estrelado na escuridão e no silêncio da noite. Fazemo-lo não apenas para ser fiéis às narrações do Evangelho, mas também pelo significado que possui. Pensemos nas vezes sem conta que a noite envolve a nossa vida. Pois bem, mesmo em tais momentos, Deus não nos deixa sozinhos, mas faz-Se presente para dar resposta às questões decisivas sobre o sentido da nossa existência: Quem sou eu? Donde venho? Por que nasci neste tempo? Por que amo? Por que sofro? Por que hei de morrer? Foi para dar uma resposta a estas questões que Deus Se fez homem. A sua proximidade traz luz onde há escuridão, e ilumina a quantos atravessam as trevas do sofrimento (cf. Lc 1, 79).
Merecem também uma referência as paisagens que fazem parte do Presépio; muitas vezes aparecem representadas as ruínas de casas e palácios antigos que, nalguns casos, substituem a gruta de Belém tornando-se a habitação da Sagrada Família. Parece que estas ruínas se inspiram na Legenda Áurea, do dominicano Jacopo de Varazze (século XIII), onde se refere a crença pagã segundo a qual o templo da Paz, em Roma, iria desabar quando desse à luz uma Virgem. Aquelas ruínas são sinal visível sobretudo da humanidade decaída, de tudo aquilo que cai em ruína, que se corrompe e definha. Este cenário diz que Jesus é a novidade no meio dum mundo velho, e veio para curar e reconstruir, para reconduzir a nossa vida e o mundo ao seu esplendor originário.
5. Uma grande emoção se deveria apoderar de nós, ao colocarmos no Presépio as montanhas, os riachos, as ovelhas e os pastores! Pois assim lembramos, como preanunciaram os profetas, que toda a criação participa na festa da vinda do Messias. Os anjos e a estrela-cometa são o sinal de que também nós somos chamados a pôr-nos a caminho para ir até à gruta adorar o Senhor.
«Vamos a Belém ver o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer» (Lc 2, 15): assim falam os pastores, depois do anúncio que os anjos lhes fizeram. É um ensinamento muito belo, que nos é dado na simplicidade da descrição. Ao contrário de tanta gente ocupada a fazer muitas outras coisas, os pastores tornam-se as primeiras testemunhas do essencial, isto é, da salvação que nos é oferecida. São os mais humildes e os mais pobres que sabem acolher o acontecimento da Encarnação. A Deus, que vem ao nosso encontro no Menino Jesus, os pastores respondem, pondo-se a caminho rumo a Ele, para um encontro de amor e de grata admiração. É precisamente este encontro entre Deus e os seus filhos, graças a Jesus, que dá vida à nossa religião e constitui a sua beleza singular, que transparece de modo particular no Presépio.
6-. Nos nossos Presépios, costumamos colocar muitas figuras simbólicas. Em primeiro lugar, as de mendigos e pessoas que não conhecem outra abundância a não ser a do coração. Também estas figuras estão próximas do Menino Jesus de pleno direito, sem que ninguém possa expulsá-las ou afastá-las dum berço de tal modo improvisado que os pobres, ao seu redor, não destoam absolutamente. Antes, os pobres são os privilegiados deste mistério e, muitas vezes, aqueles que melhor conseguem reconhecer a presença de Deus no meio de nós.
No Presépio, os pobres e os simples lembram-nos que Deus Se faz homem para aqueles que mais sentem a necessidade do seu amor e pedem a sua proximidade. Jesus, «manso e humilde de coração» (Mt 11, 29), nasceu pobre, levou uma vida simples, para nos ensinar a identificar e a viver do essencial. Do Presépio surge, clara, a mensagem de que não podemos deixar-nos iludir pela riqueza e por tantas propostas efémeras de felicidade. Como pano de fundo, aparece o palácio de Herodes, fechado, surdo ao jubiloso anúncio. Nascendo no Presépio, o próprio Deus dá início à única verdadeira revolução que dá esperança e dignidade aos deserdados, aos marginalizados: a revolução do amor, a revolução da ternura. Do Presépio, com meiga força, Jesus proclama o apelo à partilha com os últimos como estrada para um mundo mais humano e fraterno, onde ninguém seja excluído e marginalizado.Muitas vezes, as crianças (mas os adultos também!) gostam de acrescentar, no Presépio, outras figuras que parecem não ter qualquer relação com as narrações do Evangelho. Contudo esta imaginação pretende expressar que, neste mundo novo inaugurado por Jesus, há espaço para tudo o que é humano e para toda a criatura. Do pastor ao ferreiro, do padeiro aos músicos, das mulheres com a bilha de água ao ombro às crianças que brincam… tudo isso representa a santidade do dia a dia, a alegria de realizar de modo extraordinário as coisas de todos os dias, quando Jesus partilha connosco a sua vida divina.
7. A pouco e pouco, o Presépio leva-nos à gruta, onde encontramos as figuras de Maria e de José. Maria é uma mãe que contempla o seu Menino e O mostra a quantos vêm visitá-Lo. A sua figura faz pensar no grande mistério que envolveu esta jovem, quando Deus bateu à porta do seu coração imaculado. Ao anúncio do anjo que Lhe pedia para Se tornar a mãe de Deus, Maria responde com obediência plena e total. As suas palavras – «eis a serva do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38) – são, para todos nós, o testemunho do modo como abandonar-se, na fé, à vontade de Deus. Com aquele «sim», Maria tornava-Se mãe do Filho de Deus, sem perder – antes, graças a Ele, consagrando – a sua virgindade. N’Ela, vemos a Mãe de Deus que não guarda o seu Filho só para Si mesma, mas pede a todos que obedeçam à palavra d’Ele e a ponham em prática (cf. Jo 2, 5).Ao lado de Maria, em atitude de quem protege o Menino e sua mãe, está São José. Geralmente, é representado com o bordão na mão e, por vezes, também segurando um lampião. São José desempenha um papel muito importante na vida de Jesus e Maria. É o guardião que nunca se cansa de proteger a sua família. Quando Deus o avisar da ameaça de Herodes, não hesitará a pôr-se em viagem emigrando para o Egito (cf. Mt 2, 13-15). E depois, passado o perigo, reconduzirá a família para Nazaré, onde será o primeiro educador de Jesus, na sua infância e adolescência. José trazia no coração o grande mistério que envolvia Maria, sua esposa, e Jesus; homem justo que era, sempre se entregou à vontade de Deus e pô-la em prática.
8. O coração do Presépio começa a palpitar, quando colocamos lá, no Natal, a figura do Menino Jesus. Assim Se nos apresenta Deus, num menino, para fazer-Se acolher nos nossos braços. Naquela fraqueza e fragilidade, esconde o seu poder que tudo cria e transforma. Parece impossível, mas é assim: em Jesus, Deus foi criança e, nesta condição, quis revelar a grandeza do seu amor, que se manifesta num sorriso e nas suas mãos estendidas para quem quer que seja.
O nascimento duma criança suscita alegria e encanto, porque nos coloca perante o grande mistério da vida. Quando vemos brilhar os olhos dos jovens esposos diante do seu filho recém-nascido, compreendemos os sentimentos de Maria e José que, olhando o Menino Jesus, entreviam a presença de Deus na sua vida.
«De facto, a vida manifestou-se» (1 Jo 1, 2): assim o apóstolo João resume o mistério da Encarnação. O Presépio faz-nos ver, faz-nos tocar este acontecimento único e extraordinário que mudou o curso da história e a partir do qual também se contam os anos, antes e depois do nascimento de Cristo.
O modo de agir de Deus quase cria vertigens, pois parece impossível que Ele renuncie à sua glória para Se fazer homem como nós. Que surpresa ver Deus adotar os nossos próprios comportamentos: dorme, mama ao peito da mãe, chora e brinca, como todas as crianças. Como sempre, Deus gera perplexidade, é imprevisível, aparece continuamente fora dos nossos esquemas. Assim o Presépio, ao mesmo tempo que nos mostra Deus tal como entrou no mundo, desafia-nos a imaginar a nossa vida inserida na de Deus; convida a tornar-nos seus discípulos, se quisermos alcançar o sentido último da vida.
9. Quando se aproxima a festa da Epifania, colocam-se no Presépio as três figuras dos Reis Magos. Tendo observado a estrela, aqueles sábios e ricos senhores do Oriente puseram-se a caminho rumo a Belém para conhecer Jesus e oferecer-Lhe de presente ouro, incenso e mirra. Estes presentes têm também um significado alegórico: o ouro honra a realeza de Jesus; o incenso, a sua divindade; a mirra, a sua humanidade sagrada que experimentará a morte e a sepultura.
Ao fixarmos esta cena no Presépio, somos chamados a refletir sobre a responsabilidade que cada cristão tem de ser evangelizador. Cada um de nós torna-se portador da Boa-Nova para as pessoas que encontra, testemunhando a alegria de ter conhecido Jesus e o seu amor; e fá-lo com ações concretas de misericórdia.
Os Magos ensinam que se pode partir de muito longe para chegar a Cristo: são homens ricos, estrangeiros sábios, sedentos de infinito, que saem para uma viagem longa e perigosa e que os leva até Belém (cf. Mt 2, 1-12). À vista do Menino Rei, invade-os uma grande alegria. Não se deixam escandalizar pela pobreza do ambiente; não hesitam em pôr-se de joelhos e adorá-Lo. Diante d’Ele compreendem que Deus, tal como regula com soberana sabedoria o curso dos astros, assim também guia o curso da história, derrubando os poderosos e exaltando os humildes. E de certeza, quando regressaram ao seu país, falaram deste encontro surpreendente com o Messias, inaugurando a viagem do Evangelho entre os gentios.
10. Diante do Presépio, a mente corre de bom grado aos tempos em que se era criança e se esperava, com impaciência, o tempo para começar a construí-lo. Estas recordações induzem-nos a tomar consciência sempre de novo do grande dom que nos foi feito, transmitindo-nos a fé; e ao mesmo tempo, fazem-nos sentir o dever e a alegria de comunicar a mesma experiência aos filhos e netos. Não é importante a forma como se arma o Presépio; pode ser sempre igual ou modificá-la cada ano. O que conta, é que fale à nossa vida. Por todo o lado e na forma que for, o Presépio narra o amor de Deus, o Deus que Se fez menino para nos dizer quão próximo está de cada ser humano, independentemente da condição em que este se encontre.Queridos irmãos e irmãs, o Presépio faz parte do suave e exigente processo de transmissão da fé. A partir da infância e, depois, em cada idade da vida, educa-nos para contemplar Jesus, sentir o amor de Deus por nós, sentir e acreditar que Deus está connosco e nós estamos com Ele, todos filhos e irmãos graças àquele Menino Filho de Deus e da Virgem Maria. E educa para sentir que nisto está a felicidade. Na escola de São Francisco, abramos o coração a esta graça simples, deixemos que do encanto nasça uma prece humilde: o nosso «obrigado» a Deus, que tudo quis partilhar connosco para nunca nos deixar sozinhos.
Dado em Gréccio, no Santuário do Presépio, a 1 de dezembro de 2019, sétimo do meu pontificado.
Franciscus
  
[1] Santo Agostinho, Sermão 189, 4.
[2] Tomás de Celano, Vita Prima, 85: Fontes Franciscanas, 468.
[3] Cf. ibid., 85: o. c., 469. [4] Ibid., 86: o. c., 470.


Em Maria, descobrimos que todos somos imaculados(as)


“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo! (Lc 1,28)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Solenidade do Imaculada Conceição de Nossa Senhora - Ciclo A (08/12/2019) que corresponde ao texto bíblico de Lucas 1,26-38.
Celebramos neste domingo a festa de Maria Imaculada. O dogma da Imaculada Conceição foi proclamado pelo Papa Pio IX, na Bula “Ineffabilis Deus”, no dia 08 de dezembro de 1854. Nele se afirma que Maria, à diferença dos demais seres humanos, não se viu alcançada pelo “pecado original”, sendo “imaculada” (“sem mancha”) desde o momento de sua concepção.
Mas, falar de Maria como Imaculada tem um sentido muito mais profundo que a afirmação dogmática de “ser preservada da mancha original”. Falar da Imaculada é tomar consciência de que, em um ser humano (Maria), descobrimos algo, no mais profundo de seu ser, que foi sempre limpo, puro, sem mancha alguma, imaculado. O verdadeiramente importante é que, se esse núcleo imaculado está presente em um ser humano (Maria), então podemos ter a garantia de que está presente em todos os seres humanos.
O próprio S. Paulo afirma que “em Cristo Jesus, Deus nos elegeu, antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados, diante dele, no amor”. (Ef 1,4). Essa eleição é para todos, sem exceção. Não é uma possibilidade, mas a realidade que nos faz ser. Descobri-la e vivê-la, sim, depende de nós.
Essa dimensão de nosso ser que nada nem ninguém pode manchar, é nosso autêntico ser. É o tesouro escondido, a pérola preciosa.
Ao longo dos séculos, temos colocado sobre a figura de Maria uma infinidade de adornos que levaremos muito tempo para tirar e voltar à sua simplicidade e pureza originais. Maria não necessita adornos.
A festa de Maria Imaculada nos revela a presença do divino nela e em nós. Nela descobrimos as maravilhas de Deus. O núcleo íntimo de Maria é imaculado, incontaminado, porque é o que há de Deus nela. Maria é grande porque descobriu e viveu o divino que fez nela sua morada. Não são os mantos luxuosos e os adornos colocados sobre ela, através dos séculos, que a faz grande, mas o fato de ter descoberto seu ser fundado em Deus e ter expandido sua feminilidade a partir desta realidade.
O que devemos admirar em Maria é o fato de ter vivido essa realidade e ter deixado transparecer o divino através de todos os poros de seu ser humano. Ela deixa passar a luz que há em seu interior, sem diminui-la nem filtrá-la. Quando se diz que Maria é Imaculada, quer-se dizer que é no silêncio do corpo, no silêncio do coração, do silêncio do Espírito que o Verbo pode ser gerado.
Como foi possível que Maria alcançasse essa plenitude? Aqui está o verdadeiro sentido do dogma da Imaculada. Ela foi o que foi porque descobriu e viveu essa realidade de Deus nela. Tudo o que tem de exemplaridade para nós devemos a ela, não porque Deus lhe tenha cumulado de privilégios. Ela é referência inspiradora para todos nós porque podemos seguir sua trajetória e podemos descobrir e viver o que ela descobriu e viveu. Se continuamos considerando Maria como uma privilegiada, continuaremos pensando que ela foi o que foi graças a algo que nós não temos; portanto, toda tentativa de imitá-la seria em vão.
Dentro de cada um de nós, constituindo o núcleo de nosso ser, existe uma realidade transcendente, que não pode ser contaminada. O divino que há em nós, permanecerá sempre puro e limpo. Maria ativou esta dimensão de seu ser até empapar tudo o que ela era, “alma e corpo”. O que celebramos é sua plenitude de vida, aberta e expansiva, e não um privilégio que a livrou de uma “mancha”.
Podemos dizer que Maria é imaculada, porque viveu essa realidade de Deus nela. Ela é Imaculada para todos, por todos e em todos; em outras palavras, em Maria somos todos imaculados(as); somos imaculados(as) em nosso verdadeiro ser. O dogma da Imaculada Conceição fala de todos nós: isso é o que realmente somos. Em nossa verdadeira identidade, somos imaculados, limpos, inocentes...
Falamos demais sobre o “pecado original” e muito pouco sobre a “beatitude original”. Existe em nós uma realidade mais profunda que a nossa resistência, um sim mais profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência original que todos os nossos medos e feridas... É preciso encontrar a confiança original.
Maria é o estado de confiança original. Assim, os Antigos Padres da Igreja viam nela o modelo da beatitude original, a mulher da pura confiança, do sim original Àquele que É.
Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência original, aberta à presença do divino.
A partir desta perspectiva, Maria nos está recordando que, graças a pessoas parecidas com ela, ou seja, pessoas que se esvaziaram de seu próprio “ego”, é que foram capazes de entrar em sintonia com a Vontade de Deus; é ali, somente ali, no espaço interior, livre de todo resquício de auto-centramento, que Deus pode entrar, continua e continuará entrando em nosso mundo, para trazer sua Boa Nova, traduzida em tantas e tantas realidades concretas.
A afirmação de que ela tenha sido “concebida sem pecado original” corre o risco de situá-la muito distante de nós. Pelo contrário, se a veneramos e nela nos inspiramos para viver o seguimento do seu Filho Jesus é porque a encontramos muito próxima de nossa vida. A vida que temos vivido até agora e a que continuamos vivendo: cheia de luzes e sombras, de esperanças e de desencantos.
Maria é grande por sua simplicidade, porque aceita ser serva, em sintonia com Deus. Maria não é uma extra-terrestre, mas uma pessoa humana exatamente igual a cada um de nós. O extra-ordinário nela foi sua fidelidade e disponibilidade, sua capacidade de entrega. Toda a grandeza de Maria está contida em uma só palavra: “fiat”. Maria não pôs nenhum obstáculo para que o divino que havia nela se expandisse totalmente; por isso, chegou à plenitude do humano. Devemos nos alegrar que um ser humano possa nos ensinar o caminho da plenitude, do divino.
Nesse sentido, Maria é a referência para todos nós porque a vemos como a pessoa que foi crescendo dia-a-dia, sempre aberta ao projeto de Deus. Esvaziando-se de si mesma, renunciando à sua vontade, para que Deus, o Todo-poderoso, como ela mesma cantará no Magnificat, entrasse em nossa história, encarnado na pessoa de Jesus. Um Deus “todo-Poderoso” que não usou seu poder para atuar de maneira impositiva, mas, em Maria “realizou maravilhas” para que, através dela, seu amor e sua misericórdia se fizessem visíveis a toda a humanidade. “Seu amor se estende de geração em geração...”, proclamará também no Magnificat.
Inspirados em Maria, é preciso encontrar, em nós mesmos, este lugar por onde entra a vida, este lugar por onde entra o divino, este lugar por onde entra o amor. É uma experiência de silêncio, uma experiência de vazio, alguma coisa de mais profundo do que aquilo que se chama o “pecado original”.
É assim que se fala de Imaculada conceição. O Verbo é concebido no que há de mais imaculado em nós, no que há de mais completamente silencioso. Isto supõe que haja no corpo humano um lugar onde não existe memória doentia nem a presença do “ego cheio de si”, mas do eu esvaziado, de onde nasce a vida.
É preciso entrar num estado de silêncio, de vazio de si mesmo, de total receptividade, para que o Verbo possa ser gerado em nós. “Assim novamente encarnado”, nos diz Santo Inácio de Loyola.
Para meditar na oração:
No relato da Anunciação, descreve-se um itinerário de iniciação espiritual. É preciso, antes de mais nada, entrar neste estado de escuta, neste estado de confiança, neste sim, pacificar nossas memórias e, então, não ter medo da visita do anjo e da alegria que ele pode trazer.
Mas também não ter medo da perturbação que pode surgir. Tal perturbação é que nos faz descer ao chão de nossa vida, vai nos conduzir até a sombra, até o mais profundo de nosso eu interior, até a profundeza da nossa humanidade. E é ali que que vai brotar o nosso “sim” original; é ali que vai nascer o divino que nos conduzirá à plenitude de vida.
- Fazer memória das experiências de “anunciação” em sua vida: o que mudou? Que movimentos vitais surgiram?

domingo, 10 de novembro de 2019















Crisma em Lago Azul- Go 
O(A) Sacramento da Crisma é o que nos coloca num processo de maior maturidade e permite um testemunho feito de atitudes comprometedoras na vida, dentro da família e da comunidade.
O(A) cristão(ã) crismado(a) se torna responsável por uma Igreja viva e renovada e por um mundo mais justo e mais fraterno.


domingo, 20 de outubro de 2019



 “Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado” (Lc 14,11) 
Jesus sempre se revelou muito livre, transitando por mesas de diferentes pessoas. É muito inspirador ter em conta o contexto do evangelho deste domingo. Ele nos revela, mais uma vez, Jesus participando de uma refeição, convidado por “um dos chefes dos fariseus” da região. É uma refeição especial de sábado, preparada desde a véspera com todo esmero. Como é costume, os convidados são amigos do anfitrião, fariseus de grande prestígio, doutores da lei, modelos de vivência religiosa para todo o povo.
Jesus já era uma pessoa muito conhecida e muito discutida. Seguramente a intenção deste convite era comprometê-lo diante dos demais convidados. Mas temos a impressão que Jesus não se sente cômodo neste ambiente; sente falta de seus amigos, os pobres, aqueles que encontra mendigando pelos caminhos, aqueles que nunca são convidados por ninguém, aqueles que não contam: excluídos da convivência, esquecidos pela religião, desprezados por quase todos.
Sabemos que Jesus sempre se fez presente no lugar onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e abriu para eles um “novo lugar” no Reino do Pai. Na Galileia, Jesus teve suas preferências e escolheu o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se faziam donos dos lugares. Os evangelhos destacam que Jesus, na sua vida e missão, sempre deu grande importância às refeições em comum, mesas de partilha, mesas festivas... É neste ambiente de comunhão que o Reino se visibiliza e antecipa o sentido da refeição plena, preparada pelo Pai.
É a partir desse ato sagrado que podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).
O Reino de Deus, ao se fazer presente, desperta em nós a mística da mesa que alimenta uma vida que se faz doação, como o pão que é partilhado: a amizade, a convivência, a acolhida... Sentar-se à mesa com o outro é descobrir-se vivo, corpo pulsante, latente, carente. Mas é também descobrir um outro tipo de alimento, que só pode ser colhido na delicadeza da inter-relação, da inter-comum-união com o outro. E a vida floresce em plenitude quando está impregnada de amor e gratuidade, sem competição de “egos” e nem desejos de protagonismo. 
No texto do evangelho deste domingo, encontramos duas pequenas parábolas. Uma se refere aos convidados; outra diz respeito ao anfitrião. Em ambos os casos, Jesus nos propõe uma maneira diferente de compreender as relações humanas. Ele quer deslocar comportamentos que consideramos normais, para entrar em uma nova dinâmica, que nos leva a mudar a escala de valores do mundo.
Na primeira imagem, não se trata de um simples ato de educação para receber elogios. Jesus parte de um modo de proceder generalizado (buscar os primeiros lugares) como ocasião para apresentar uma visão diferente e mais profunda da humildade. Colocar-se no último lugar não deve ser uma estratégia para conseguir maior admiração e honra. A frase “quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado”, pode levar-nos a uma falsa interpretação. Jesus aconselha não buscar as honras e o prestígio diante dos outros, como meio para fazer-se valer. Condena toda vanglória e vaidade como contrárias à sua mensagem. 
O convite a “sentar no último lugar” revela um enfoque nem sempre percebido em seu sentido profundo. Ele revela aos participantes da refeição um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa.
O gesto de Jesus convida a fazer um deslocamento, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade se percebe a partir deste lugar? Portanto, olhar a refeição a partir do ângulo de quem está no último lugar muda totalmente as perspectivas. Jesus revela, então, um “novo ângulo” ou um novo modo de “olhar as pessoas”: não a partir do lugar do poder, mas a partir da perspectiva dos fracos e indefesos.
Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz. Para isso é preciso uma “mudança de lugar”, um deslocamento para baixo, em direção aos pequenos. Quem “desce” encontra-se com Jesus. Quem acolhe um “pequeno” está acolhendo o “maior”, o próprio Jesus. 
A segunda parábola apresenta um matiz diferente. Antes de despedir-se, Jesus se dirige àquele que o tinha convidado. Não é para agradecer-lhe o banquete, mas para sacudir sua consciência e convidá-lo a viver  um estilo de vida menos convencional e mais humano. “Não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos. Convida os pobres, aleijados, coxos, cegos...”. Mais uma vez Jesus se esforça por humanizar a vida, rompendo esquemas e critérios de atuação que nos podem parecer muitos respeitáveis, mas que, no fundo, estão indicando nossa resistência a construir esse mundo mais humano e fraterno, querido por Deus.
Normalmente vivemos instalados em um círculo de relações familiares, sociais, políticas ou religiosas com as quais nos ajudamos mutuamente a cuidar de nossos interesses, deixando fora aqueles que nada podem trazer. Convidamos para ter acesso à nossa vida àqueles que, por sua vez, podem nos convidar.
Jesus não quer dizer que fazemos mal quando convidamos os familiares e amigos para uma refeição. Ele quer dizer que estes convites não vão mais além do egoísmo amplificado àqueles que são do nosso círculo. Essa atitude para com os amigos não é sinal do amor evangélico. O amor que Jesus nos pede precisa ir mais além do sentido comum, dos sentimentos ou do interesse pessoal. A demonstração de que  entramos na dinâmica do Reino está em que buscamos o bem dos outros sem esperar nada em troca.
A gratuidade é a marca do Reino. 
Texto bíblico:  Lc 14,1.7-14
Na oração: Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantos grupos e organizações sociais, movimentos que buscam outra cultura, a cultura da solidariedade, da interconexão responsável, do encontro comprometido.
 “Considerar” aqueles que não tem “lugar” em nossas comunidades; colocar-se em seu lugar e sentir o que eles sentem.
Pe. Adroaldo Palaoro sj





Passos para a oração


1) Dispor-se a rezar:
Escolher um texto que mais ajude a rezar
Determinar o tempo (duração) da oração para ser fiel, mesmo que sinta dificuldades.
Este tempo é para Deus!
Busco um bom lugar, tranquilo, que me ajude a concentrar, e entrar dentro de mim, a não me distrair. Encontrar uma boa posição para o corpo, que me ajude a concentrar e permanecer tranquilo (a)..
Antes de ir para o lugar da oração, fazer a pergunta: "a que vou?", pensando um pouco sobre o assunto...
2) Preparar a oração:
Fazer silêncio, acalmar-se, procurar superar a agitação das preocupações imediatas!
Relaxe, ouça por um certo tempo os ruidos ao seu redor, escute os sons de longe, os de perto...
Coloco-me diante de Deus, na verdade do que eu sou, simples, sem máscaras...
Peço a graça de ser presença na presença de Deus e de que Ele me ensine a rezar.
Deixo que o olhar misericordioso de Deus me acolha... não estou sozinho (a)!
Faço lentamente o sinal da cruz...

3) vamos rezar! Pedir a graça que quero.
Deus na sua bondade já me deu tudo, mas pedindo eu me predisponho a receber.

4) Encontrar o Alimento - releio o texto devagar, atento (a), saboreando as palavras.
Tomo consciência da frase, palavra, idéia... que mais me "tocou" - lembrar que "... Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as coisas internamente"(Sto InácioEE2)
Medito por que esta frase, palavra, idéia me chamou a atenção, o que me faz ver? de que me faz lembrar? a que me chama?...
Pergunto o que Deus está querendo me dizer...
Dialogar: falar... escutar... pedir... perguntar... silenciar...
Projeto minha vida na 

Terminando:oração e medito para tirar algum proveito.
Termino a oração conversando com o Senhor, como m amigo conversa com outro, agradecendo, louvando, pedindo, conforme o sentimento que a meditação deixou em meu coração.

Revendo a Oração: Depois de terminada a oração e em algum lugar diferente , procurar anotar algo sobre o que aconteceu durante a oração.
- que palavra ou frase mais me tocou?
- quais os sentimentos/ lembranças... apareceram em mim?
- quais são os apelos de Deus para minha vida ao rezar e sentir o que senti?




Irmãs Beneditinas da Providência

domingo, 8 de setembro de 2019



DESICÕES VITAIS!

“Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,33) 
O verbo que marca o início do relato evangélico deste domingo não indica seguimento, mas acompanhamento. Seu significado: “viajar com”, “caminhar junto a”, está longe de manifestar adesão ao projeto ou identificação com a pessoa com quem se compartilha a caminhada. 
As grandes multidões, às quais o relato de Lucas faz referência, vão se somando, pelo caminho, à marcha dos seguidores de Jesus. Agregam-se ao passo do Galileu, mas não se comprometem com Ele e com a causa do Reino. Por isso, Jesus provoca uma brusca parada e se dirige à multidão. 
Suas palavras interpelam cada um dos seus integrantes e pretendem fixar as linhas que distinguem acompanhantes de seguidores. Não basta simplesmente acompanhar Jesus; isso não leva a lugar nenhum. Chegou o momento de tomar decisões. Segui-lo, aderindo-se a seu projeto, exige dar-lhe completa prioridade. Jesus é bem claro e não fica na superfície; não quer entusiasmos que sejam fogos artificiais. 
Ninguém deve sentir-se enganado. Ficam claras as condições que marcam a fronteira entre “ser massa” e formar parte do grupo daqueles(as) que se identificam com Jesus. As três condições expostas (vv. 26-27; v. 23) não deixam lugar a dúvidas e terminam do mesmo modo: “não pode ser meu discípulo”. Só no contexto do seguimento de Jesus, podemos entender as exigências que propõe aos que o seguem (preferir-lhe à família, carregar a cruz, renúncia de tudo).
Frente à multidão que “só acompanha”, Jesus apresenta dois casos em forma de duas pequenas parábolas. Embora muito diferentes, apontam para uma mesma direção. Os protagonistas de ambos exemplos se encontram frente uma ação a realizar. Precisam tomar uma decisão. No primeiro caso, trata-se de construir uma torre; qualquer um dos integrantes da multidão pode ser o ator principal: “qual de vós querendo construir uma torre...” É preciso refletir sobre si mesmo e fazer cálculos das possibilidades que se tem em mãos. No segundo caso, fala-se de uma terceira pessoa, um rei que vai enfrentar uma batalha: “qual é o rei que ao sair para guerrear com outro...? Trata-se, nesse caso, de atuar com prudência, prevendo acontecimentos hostis que possam surgir a partir de fora.
No primeiro, ressalta-se a atividade construtiva e pacífica; no segundo, aparece um risco: o movimento destrutivo motivado por uma guerra que surge repentinamente. Ambas situações parecem concordar com as duas condições antes expostas. Uma, exige dar um passo adiante, seguindo o que fora projetado. Outra, pede uma parada estratégica para medir a possibilidade de enfrentar o risco que pressiona. Trata-se de pensar; pensar antes de fazer; e fazer requer discernimento. 
Temos a impressão que o tema central do evangelho deste domingo é tão forte que se torna quase impossível abordá-lo de frente. Por isso, o melhor é pôr em prática o conselho que recebemos dele: “sentar-nos para pensar”. Temos a sensação de que o seguimento de Jesus implica sempre o dinamismo de mover-nos, deslocar-nos e caminhar; mas, às vezes, o mais aconselhável seja isso: parar um pouco e sentar-nos.
A advertência de Jesus revela grande atualidade nestes momentos críticos e decisões que ajudam a dar uma feição original ao seu seguimento. Jesus chama, antes de mais nada, a um discernimento maduro: os dois protagonistas das parábolas “se sentam” para refletir, discernir... Seria uma grave irresponsabilidade viver hoje como discípulos(as) de Jesus que não sabem o que querem, nem para onde pretender ir, nem com que meios poderão contar. 
Não se pode dar o passo sem medir as consequências. Requer-se “sentar e pensar” com calma. Porque a condição para formar parte do reinado de Deus implica a ruptura com os impulsos do ego: auto-centramento, apegos, busca dos próprios interesses, busca de projeção e poder... 
Os apelos de Jesus são absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Ele” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece. Para seguir a Jesus, devemos esvaziar-nos; para entrar na posse “do todo” temos de renunciar ao “nosso todo”. Os “apegos” imobilizam-nos, congelam-nos..., impedem-nos crescer.
“Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo”. Trata-se de uma atitude, uma postura, uma entrega. E a palavra é “tudo”. Um discípulo, com um “pé atrás”, não pode ser discípulo. Não servem as entregas pela metade. Jesus não pode se contentar com “amor a prestações”, com retalhos de vida. A entrega parcial não é entrega. O “apego” a algo ou alguém, que esvazia o seguimento, anula o resto da entrega e torna impossível que nossa relação com Jesus cresça, se desenvolva e plenifique nossa vida.
Todos temos a experiência de que viver é estar continuamente tomando decisões. Desde o momento em que levantamos até à hora de deitar, estamos decidindo, algumas vezes sobre questões simples, outras vezes, sobre assuntos de maior envergadura. Sabemos que nossas decisões vão modelando nossa vida e orientando, de uma maneira ou outra, para um fim. Qual é esse fim? 
Como seguidores(as) de Jesus, somos seres em contínuo discernimento: como “cristificar” (prolongar o modo de ser e agir de Jesus) nossas opções, ações, valores, compromissos...? Sabemos que é no decidir que a pessoa torna-se pessoa, que o indivíduo torna-se sujeito. São “significativas” as decisões que imprimem uma direção à sua vida, que a constroem dia após dia; decisões carregadas de vida, abertas à vida, comprometidas com a vida... São as decisões que fazem a pessoa; formam sua personalidade, definem seu caráter e integram sua vida. A base da pessoa são suas decisões, suas determinações, fazendo com que sua vida tenha a marca da criatividade e da ousadia: construir o caminho de vida, rejeitar alternativas que a atrofiam e avançar na rota, em direção a um fim pleno de sentido.
Decidir é viver, decidir é definir-se; por isso, ao entender e refinar suas próprias maneiras de decidir, a pessoa está entendendo melhor e refinando mais sua vida. 
Em outras palavras: “somos o que são as nossas decisões”; e a decisão pelo seguimento de Jesus é aquela que mais nos humaniza e potencializa todo nosso ser; afinal, somos chamados para “seguir uma Pessoa”, aquela que foi “humana por excelência”.  Por isso, precisamos conhecer detalhadamente quais são e como as tomamos; queremos saber se nossas decisões são realmente nossas ou se são imitação daquilo que os outros fazem, ou submissão ao que os outros nos dizem para fazer. 
A coragem de decidir com firmeza e clareza é o que distingue o(a) seguidor(a) de Jesus como tal, e lhe dá sua dignidade e personalidade. Não há melhor escola humanizadora do que saber decidir. Essa é a grande contribuição que a tomada de decisões dá à nossa vida: ativar ao máximo nossos recursos, fazer valer tudo o que trazemos dentro de nós, dar vida a todo o nosso ser, que é feito para conhecer, querer e decidir. Se evitamos decisões ou fugimos de responsabilidades, condenamo-nos a viver num canto, encolhido e prostrado. Para desenvolver ao máximo nossas potencialidades, temos de enfrentar dilemas, encruzilhadas, perplexidades e responsabilidades. Isto nos faz ter acesso à vida plena, mobilizar nossas forças, encontrar a nós mesmos, encontrando-nos com Aquele que nos inspira. 
Texto bíblico:  Lc 14,25-33
Na oração: No encontro com Deus deixar aflorar aquilo que é a base, o sólido, o fundamento, que dá sentido à sua vida. Sobre quê valores, critérios, opções... você vai construir sua vida?
- A Bíblia fala do equilíbrio entre o olho, ouvido, coração e mão, quando se refere à decisão:
- olho: atenção (ler os sinais, interiores e exteriores);
- ouvido: escutar-auscultar: captar vozes do coração;
- coração: é a decisão com afeto;
- mão: é a ação (realizar na prática, a decisão). 
 * Fazer memória das suas decisões diárias: elas são “cristificadas” ou tem a marca do “ego inflado”?
Elas são oblativas, abertas, descentradas..., ou centradas no próprio interesse?
Pe. Adroaldo Palaoro sj


 Sempre em busca do sentido e da felicidade, a sabedoria implica num justo olhar para consigo mesmo e para com o mundo. Mas, também, é um dom de Deus e do Espírito, como proclamam Salomão e o Salmista. A sabedoria de Jesus é, contudo, paradoxal, porque traduz a novidade do Reino que ele prega. Conhecer os desígnios do Senhor é a grande questão do crente que deseja colocar a sua vida de acordo com a sua fé.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C (08 de setembro de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.

ESCOLHER O CRISTO É ESCOLHER AMAR
Viver é abrir-se ao novo, apoiando-se no passado; um novo que pode ser desconcertante e também exigente. Quando, no evangelho de hoje, ouvimos Jesus nos convidar a preferi-lo a todos os membros de nossa família, lembramos Gênesis 2,24: «Deixará o homem seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne.» Fazendo a transposição, veremos que esta fórmula descreve a mesma realidade deste evangelho: «O ser humano, homem ou mulher, deixará seu pai e sua mãe e se unirá ao Cristo, e os dois se tornarão uma só carne.» Em Efésios 5,21-33, Paulo põe o amor entre o homem e a mulher em paralelo com a união de Cristo com o seu corpo que é a Igreja (todos nós reunidos). Deixar tudo para tornar-se um só com Cristo (o evangelho diz «segui-lo») é apresentado no Novo Testamento como análogo ao encontro nupcial. Não se trata de simples metáfora: a união dos esposos é a imagem, o «sacramento», da nossa união com Deus. Mas o que significa preferir Cristo a tudo mais que não seja ele, mesmo em se tratando de nossos entes mais próximos? Creio que Jesus nos quer dizer que temos de preferir o amor à posse. O amor apenas sabe dar, enquanto outras formas de união sabem somente tomar. Se bem que seguir o Cristo é a melhor maneira de amarmos pai, mãe, mulher, filhos etc.…

No caminho para Jerusalém

O que acabamos de dizer exige uma explicação suplementar. Lucas situa estas palavras de Jesus no contexto da sua caminhada para Jerusalém, para a cruz. Ora, todo o relato que segue o versículo 51 do capítulo 9, onde vemos Jesus pôr-se a caminho para «a cidade que mata os profetas», está imerso numa atmosfera de aproximação da morte. Por isso Jesus fala em não preferirmos nem mesmo à nossa própria vida, mas a ele. Pois, segui-lo de fato significa comportar-se como ele se comportou, justamente ele que, em Jerusalém, deu preferência a todos nós, em detrimento de sua própria vida. A reciprocidade, portanto, se impõe. Daí resulta que, só podendo nos tornar imagem e semelhança de Deus fazendo-nos imagem e semelhança de Cristo, é a nossa própria criação que está em jogo. Só podemos existir no amor que nos faz ser e que deve se tornar a nossa própria substância. Estamos, então, nós também, no caminho para Jerusalém. Nem todos, com certeza, destinados a uma morte violenta, mas, todos, sofremos doenças, acidentes, envelhecimento... Cabe a nós acolher tudo isso como um dom da nossa vida e, por aí, unirmo-nos ao Cristo. Devemos compreender, contudo, que o sofrimento em si mesmo não tem valor nenhum, e temos razão de combatê-lo, tanto em nós como nos outros. O que tem valor é o dom, e este dom passa por tudo o que a vida nos traz, quer se trate de alegrias ou de penas. Encontrar e tornar a encontrar Deus em todas as coisas.

Escolher viver

Jesus nunca se impõe. Os «se queres» ou «quem quer», por exemplo, «ser meu discípulo», são marcas do relato evangélico. Em Deuteronômio 30,15 e 19 já líamos: «Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade (…) Escolhe, pois, a vida para que vivas...» Ora, em que consiste escolher a vida? O mesmo texto responde: amando a Deus, ou seja, amando e escolhendo o Amor. Ficamos sabendo mais tarde que amar a Deus só pode ser vivido de fato se amamos os outros (ver entre tantos outros lugares 1 João 4,20). Amar é, portanto, responder a um convite de Deus, não sob qualquer forma de coação.

Uma escolha

Devemos desconfiar disto que chamamos de amor. Uma ditadura exercida por sentimentos muito violentos significa muitas vezes somente um desejo de possuir, e não uma decisão de se entregar totalmente, para o melhor, mas também, eventualmente, para o pior. Este caráter de uma decisão livre é muito bem ilustrado pelas duas parábolas que enquadram este enunciado das condições necessárias ao seguimento de Jesus. Neste mesmo capítulo, no texto que precede este evangelho, a parábola dos convidados para as núpcias também sublinha o caráter nupcial da união com Deus (ver também em Mateus 22,1-14). Os convidados se esquivaram, porque escolheram outra prioridade em suas vidas. Logo após o convite para seguir Jesus, «carregando (cada um) a sua cruz», temos as parábolas do homem que quer construir uma torre e do rei que quer partir para a guerra. São parábolas que nos convidam a refletir bastante antes de nos decidirmos. Mas não devemos nos preocupar demais, se não temos toda a força que este empreendimento exige: Jesus, na cruz, veio nos buscar donde quer que estejamos, do mais baixo que possamos ter descido.