Em Maria, descobrimos que todos somos imaculados(as)
“Alegra-te, cheia de graça, o
Senhor está contigo! (Lc 1,28)
A reflexão bíblica é elaborada
por Adroaldo Palaoro,
padre jesuíta, comentando o evangelho da Solenidade do Imaculada Conceição de
Nossa Senhora - Ciclo A (08/12/2019) que corresponde ao texto bíblico
de Lucas 1,26-38.
Celebramos neste domingo a festa
de Maria Imaculada. O dogma da Imaculada Conceição foi
proclamado pelo Papa Pio IX, na Bula “Ineffabilis Deus”,
no dia 08 de dezembro de 1854. Nele se afirma que Maria, à diferença dos demais
seres humanos, não se viu alcançada pelo “pecado original”, sendo “imaculada”
(“sem mancha”) desde o momento de sua concepção.
Mas, falar de Maria como
Imaculada tem um sentido muito mais profundo que a afirmação dogmática de “ser
preservada da mancha original”. Falar da Imaculada é tomar consciência de que,
em um ser humano (Maria), descobrimos algo, no mais profundo de seu ser, que
foi sempre limpo, puro, sem mancha alguma, imaculado. O verdadeiramente
importante é que, se esse núcleo imaculado está presente em um ser humano
(Maria), então podemos ter a garantia de que está presente em todos os seres
humanos.
O próprio S. Paulo afirma que “em
Cristo Jesus, Deus nos elegeu, antes da criação do mundo, para sermos santos
e imaculados, diante dele, no amor”. (Ef 1,4). Essa eleição é para todos,
sem exceção. Não é uma possibilidade, mas a realidade que nos faz ser. Descobri-la
e vivê-la, sim, depende de nós.
Essa dimensão de nosso ser que
nada nem ninguém pode manchar, é nosso autêntico ser. É o tesouro escondido, a
pérola preciosa.
Ao longo dos séculos, temos
colocado sobre a figura de Maria uma infinidade de adornos que levaremos muito
tempo para tirar e voltar à sua simplicidade e pureza originais.
Maria não necessita adornos.
A festa de Maria
Imaculada nos revela a presença do divino nela e em
nós. Nela descobrimos as maravilhas de Deus. O núcleo íntimo de Maria é imaculado,
incontaminado, porque é o que há de Deus nela. Maria é grande porque descobriu
e viveu o divino que fez nela sua morada. Não são os mantos luxuosos e os
adornos colocados sobre ela, através dos séculos, que a faz grande, mas o fato
de ter descoberto seu ser fundado em Deus e ter expandido sua feminilidade a
partir desta realidade.
O que devemos admirar em Maria é
o fato de ter vivido essa realidade e ter deixado transparecer o divino através
de todos os poros de seu ser humano. Ela deixa passar a luz que há em seu
interior, sem diminui-la nem filtrá-la. Quando se diz que Maria é Imaculada,
quer-se dizer que é no silêncio do corpo, no silêncio do coração, do silêncio
do Espírito que o Verbo pode ser gerado.
Como foi possível que Maria
alcançasse essa plenitude? Aqui está o verdadeiro sentido do dogma da
Imaculada. Ela foi o que foi porque descobriu e viveu essa realidade de Deus
nela. Tudo o que tem de exemplaridade para nós devemos a ela, não porque Deus
lhe tenha cumulado de privilégios. Ela é referência inspiradora para todos nós
porque podemos seguir sua trajetória e podemos descobrir e viver o que ela
descobriu e viveu. Se continuamos considerando Maria como uma privilegiada,
continuaremos pensando que ela foi o que foi graças a algo que nós não temos;
portanto, toda tentativa de imitá-la seria em vão.
Dentro de cada um de nós,
constituindo o núcleo de nosso ser, existe uma realidade transcendente, que não
pode ser contaminada. O divino que há em nós, permanecerá sempre puro e limpo.
Maria ativou esta dimensão de seu ser até empapar tudo o que ela era, “alma e
corpo”. O que celebramos é sua plenitude de vida, aberta e expansiva, e não um
privilégio que a livrou de uma “mancha”.
Podemos dizer que Maria é
imaculada, porque viveu essa realidade de Deus nela. Ela é Imaculada para
todos, por todos e em todos; em outras palavras, em Maria somos todos
imaculados(as); somos imaculados(as) em nosso verdadeiro ser. O dogma da
Imaculada Conceição fala de todos nós: isso é o que realmente somos. Em nossa
verdadeira identidade, somos imaculados, limpos, inocentes...
Falamos demais sobre o “pecado
original” e muito pouco sobre a “beatitude original”. Existe em nós uma
realidade mais profunda que a nossa resistência, um sim mais
profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência original que todos os
nossos medos e feridas... É preciso encontrar a confiança original.
Maria é o estado de confiança
original. Assim, os Antigos Padres da Igreja viam nela o modelo da
beatitude original, a mulher da pura confiança, do sim original
Àquele que É.
Maria é a nossa verdadeira
natureza, é a nossa verdadeira inocência original, aberta à presença do divino.
A partir desta perspectiva, Maria
nos está recordando que, graças a pessoas parecidas com ela, ou seja, pessoas
que se esvaziaram de seu próprio “ego”, é que foram capazes de entrar em
sintonia com a Vontade de Deus; é ali, somente ali, no espaço
interior, livre de todo resquício de auto-centramento, que Deus pode entrar,
continua e continuará entrando em nosso mundo, para trazer sua Boa Nova,
traduzida em tantas e tantas realidades concretas.
A afirmação de que ela tenha sido
“concebida sem pecado original” corre o risco de situá-la muito distante de
nós. Pelo contrário, se a veneramos e nela nos inspiramos para viver o seguimento
do seu Filho Jesus é porque a encontramos muito próxima de nossa vida. A vida
que temos vivido até agora e a que continuamos vivendo: cheia de luzes e
sombras, de esperanças e de desencantos.
Maria é grande por sua
simplicidade, porque aceita ser serva, em sintonia com Deus. Maria não é uma
extra-terrestre, mas uma pessoa humana exatamente igual a cada um de nós. O
extra-ordinário nela foi sua fidelidade e disponibilidade, sua capacidade de
entrega. Toda a grandeza de Maria está contida em uma só palavra: “fiat”.
Maria não pôs nenhum obstáculo para que o divino que havia nela se expandisse
totalmente; por isso, chegou à plenitude do humano. Devemos nos alegrar que um
ser humano possa nos ensinar o caminho da plenitude, do divino.
Nesse sentido, Maria é a
referência para todos nós porque a vemos como a pessoa que foi crescendo
dia-a-dia, sempre aberta ao projeto de Deus. Esvaziando-se de si mesma,
renunciando à sua vontade, para que Deus, o Todo-poderoso, como ela mesma
cantará no Magnificat, entrasse em nossa história, encarnado
na pessoa de Jesus. Um Deus “todo-Poderoso” que não usou seu poder para atuar
de maneira impositiva, mas, em Maria “realizou maravilhas” para que, através
dela, seu amor e sua misericórdia se fizessem visíveis a toda a humanidade. “Seu
amor se estende de geração em geração...”, proclamará também no Magnificat.
Inspirados em Maria, é preciso
encontrar, em nós mesmos, este lugar por onde entra a vida, este lugar por onde
entra o divino, este lugar por onde entra o amor. É uma experiência de
silêncio, uma experiência de vazio, alguma coisa de mais profundo do que aquilo
que se chama o “pecado original”.
É assim que se fala de Imaculada
conceição. O Verbo é concebido no que há de mais imaculado em nós, no que
há de mais completamente silencioso. Isto supõe que haja no corpo humano um
lugar onde não existe memória doentia nem a presença do “ego cheio de si”, mas
do eu esvaziado, de onde nasce a vida.
É preciso entrar num estado de
silêncio, de vazio de si mesmo, de total receptividade, para que o Verbo possa
ser gerado em nós. “Assim novamente encarnado”, nos diz Santo Inácio de
Loyola.
Para
meditar na oração:
No relato da Anunciação,
descreve-se um itinerário de iniciação espiritual. É preciso, antes de mais
nada, entrar neste estado de escuta, neste estado de confiança, neste sim,
pacificar nossas memórias e, então, não ter medo da visita do anjo e da alegria
que ele pode trazer.
Mas também não ter medo da
perturbação que pode surgir. Tal perturbação é que nos faz descer ao chão de
nossa vida, vai nos conduzir até a sombra, até o mais profundo de nosso eu
interior, até a profundeza da nossa humanidade. E é ali que que vai brotar o
nosso “sim” original; é ali que vai nascer o divino que nos conduzirá à
plenitude de vida.
- Fazer memória das experiências
de “anunciação” em sua vida: o que mudou? Que movimentos vitais
surgiram?
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