II) Re-inventar
nossa maneira de viver
“Quem se apega à sua vida, perde-a”
Texto bíblico: Jo
12,20-33
Estamos chegando no
tempo quaresmal; abre-se a porta para a intensa vivência Pascal. Percorremos
este caminho vivo de jejum, esmola e oração, centrados na pessoa de Jesus, para
aprender d’Ele como viver de maneira mais oblativa, aberta, solidária... Tem
sido um caminho de intensidade humana? Temos colocado o tom de nossa fé na
direção da Páscoa?
O
final da quaresma é tempo de olhar para trás com muita gratidão; tal atitude
nos capacita para continuar olhando para frente, subindo com Jesus e seus
discípulos a Jerusalém. Sempre há oportunidade para consoli-dar nossa vida e
enraizar nossa fé. Não permitamos que continuemos passando o tempo como se nada
surpreendente pudesse acontecer!
À luz da Páscoa somos movidos a
re-inventar continuamente a nossa vida. Há uma outra forma de vida que
subjaz debaixo daquela que levamos cada dia: uma vida mais calma, mais
consciente, mais autêntica; uma vida de pequenas coisas, de gestos carregados
de ternura, de rotinas habitadas que são vividas como novidade, de silêncios
que dançam com as palavras...
“Inventar”, vem da expressão latina “inventio-onis”
que significa “encontrar algo” que até agora não se havia descoberto;
inventores são aqueles que descobrem algo até então oculto.
Por detrás da pandemia, está sendo
oferecida a todos nós uma “mudança de rumo na humanidade”. Estamos sendo
forçados a quebrar o ritmo estressante e apressado que levávamos; nosso planeta
respira, nossas cida-des estão se purificando de tanta contaminação acumulada;
estamos encontrando formas novas de trabalho e de educação escolar; estamos
ficando mais sóbrios, contentando-nos com o necessário; temos descoberto outra
forma de inter-relação e de mais intensidade no amor...
O apelo de Jesus, no
evangelho deste domingo, é para “perder” nossa vida, no sentido de
não nos apegar de maneira egóica a ela e abrir-nos para recebe uma Vida maior,
nossa verdadeira vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar,
abandonar nossas medidas de segurança, libertar-nos do domínio cego do ego,
para que possa transparecer o que realmente somos, nossa dignidade mais
profunda. Não é o auto-centrar-nos que confere dignidade à existência, mas o
des-centrar-nos e deslocar-nos em favor dos outros.
Aquele que “se
apega à sua vida”, ou seja, aquele que
quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se envolver com as
situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede uma presença
diferente..., esse “perderá sua vida”. Quê vida mais atrofiada quando se vive
bem comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente,
economicamente, socialmente...!
Mas aquele que, por amor ao Reino, se desinstala,
acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua
a dor do outro... esse “ganhará” a vida. Sua vida transformar-se-á em Vida.
Libertam o mundo todos aqueles e aquelas que fazem de suas vidas uma doação, um
oferecimento. Assim, se deixam atravessar por Deus, puro Dom de Si, Amor que
não se reserva a Si mesmo.
É gratificante fazer memória de tantos homens e
mulheres que foram presenças de misericórdia e, à maneira de Jesus, consumiram
suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com
seu compromisso ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por
viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem aparecer
nas “redes sociais”, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento
silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
“Se o grão de trigo não
morre”, ou seja, se o ser humano não faz de sua vida
um dom para os outros, se ele não investe a sua vida em favor da vida, acaba
perdendo-se a si mesmo. Esta é a mensagem radical deste quinto domingo da
quaresma: “morrer de vida”,
não de morte, morrer fazendo que outros vivam, numa efusão de amor. Trata-se de
“morrer de tanto viver”, nas diferentes dimensões da vida: individual,
familiar, comunitário, social... Esse é o sentido da Cruz cristã: não é cruz
vazia, nem um “peso morto”. É perda que se converte em ganho.
Sabemos que, à medida que nosso ego aumenta, ele se distancia da vida
dos outros e só se ocupa em conservar a sua, buscando saciar sua fome
devoradora para conquistar, acumular, ser o centro...
Isso lhe faz perder a capacidade de
assombrar-se e de deixar-se afetar pela alegria e pela dor dos outros; tudo se
converte em meio e instrumento para sua própria gratificação. O auge da
afirmação de si mesmo se contrasta com a afirmação de Jesus, vista como
aberração humana: “aquele que se apega
à sua vida, perde-a”. Qual é a pérola de grande valor que se oculta
nesta afirmação? Onde nos quer conduzir Jesus?
É
um fato central de nossa existência que a própria vida, por mais valiosa que
seja, não se encontra sob nosso controle. Então precisamos nos soltar, deixar
de apegar-nos a nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa auto-afirmação, para
que Deus possa entrar e atuar livremente em nosso interior.
Jesus
recorre a uma brevíssima parábola, para fundamentar isso. Só o grão de trigo
que morre dá muito fruto. Esta parábola apresenta mais uma vez, e de outro
modo, a lição fundamental do Evangelho inteiro, o ponto máximo da mensagem de
Jesus: o amor oblativo, o amor que se entrega a si mesmo, e que nesse
perder-se a si mesmo, nesse morrer a si mesmo, gera a vida.
O ser humano se caracteriza por ser
capaz de amar, por ser capaz de sair de si mesmo e entregar sua vida ou
entregar-se a si mesmo por amor. A humanização ou hominização seria esse “descentramento”
de si mesmo, que é centramento nos demais e no amor. A parábola do grão de
trigo que morre expressa o ponto máximo dessa maturação da Humanidade; tanto é
verdade que pode ser considerada como uma expressão do cume do amor. No fundo,
esta parábola equivale ao mandamento novo: “Este é
o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos
amei; não há maior prova de amor que dar a vida” .
As
palavras de Jesus têm também aqui a pretensão de síntese: aí se encerra toda a
mensagem do Evangelho. E, na realidade, aí se encerra também toda mensagem
religiosa, pois também as outras religiões chegaram a descobrir o amor, a
compaixão, a solidariedade, o “des-centramento” de si como a essência da
religião.
Jesus é a expressão
máxima da humanidade que busca e deixa emergir o melhor que há em seu interior.
A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque na vitória da Vida entregue, a vida ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida não se conta pelas respirações, mas
pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do
milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição.
A vida,
desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em
plenitude. A certeza de nossa fé em Cristo morto e
ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas
de busca de segurança e imortalidade, e ir encontrando uma paz profunda que nos
permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.
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